Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Aquele aplicativo…
Lenira Vasco – SPR/PE
Ela corre os dedos pelas linhas daquele aplicativo em um fazer ausente, observando uma sucessão de imagens. Algumas delas até provocam um pequeno sorriso. O dedo não se sensibiliza, continua a busca. Pensamento distante. Olha, mas não vê direito. O dedo para em uma imagem por pura inércia.
Amanhã tenho que remarcar o médico.
Ela volta à imagem: um grande terreno amarelo cheio de galhos secos agride o olhar. Ela parecia não querer mais olhar, mas viu uma pequena casa colorida de um branco que se misturava à estrada amarelada a sua frente. Um céu azul triste, amarelado, e um ônibus vazio de ESCOLA.
Será que Heloísa fechou a janela do quarto? Começou a chover.
Volta à imagem. Ao seu lado, leu na Folha de São Paulo: “IDEB As cem escolas públicas do país com melhor desempenho educacional nos anos iniciais do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano) são todas do Nordeste.”.
Não pensa muito, nem mesmo lê o resto da notícia. O dedo volta a correr pelas imagens. Por algum motivo, algo lhe intriga. Corre o dedo de volta. Lê o restante da notícia: “O Ceará concentra o maior número de unidades que lideram o IDEB, principal indicador de qualidade da educação do Brasil. Das 100 escolas com melhores resultados, 67 são escolas públicas do Ceará, 32 são de Alagoas e uma de Pernambuco. A média dessas unidades é muito superior à dos colégios particulares do país, que foi de 7,2.”.
Fica pensando, e não compreende a relação entre a imagem e a notícia. Qual o diálogo entre foto e notícia? A notícia é boa, e a imagem é ruim, aliás, péssima! Quem não presta atenção retém na memória apenas a imagem como o negativo de uma “foto-identidade”.
Um turbilhão de pensamentos lhe toma. Como ainda há quem reforce essa representação pequena e antiga? Indignação. Vai olhar os comentários e alguém acusa: “A escolha foi intencional, querem fortalecer esse estereótipo!!” Para, e à sua memória vêm flashes de diversas lições: capitalismo, ideologia, miséria, riqueza, dominação.
É isso, formas de dominação!!! Ah, por causa de uma fotografia infeliz, seu pensamento chegar às formas de dominação já é demais. Espera, mas a xenofobia não é uma forma de dominação?
Determinar a imagem do outro é, sim, uma forma de dominação. Ainda que não tenha sido feita conscientemente, a escolha da foto é o produto de um sistema de valores. Valores? Sim, valores.
Pensa mais um pouco, e lembra dos afetos. Valores afetados, como gramáticas de identificação coloridas pelos sentimentos. Que cores seriam essas? Pelas cores da foto certamente não teriam vida. Pois é. Pensa mais uma vez: como puderam colocar uma notícia tão importante com essa imagem?
São os tais afetos que corrompem a racionalidade e não disfarçam uma mensagem a que já se acostumara: ódio e preconceito. Novamente indignação. Lembra de algumas notícias recentes: Aumentam ataques de ódio contra nordestinos nas redes sociais durante as eleições. Ódio?
Será que só uma imagem pode invocar o ódio? Claro que não, né? Mas pode carregar todo o sistema de preconceitos que ela simboliza. Quem trabalha e quem é “sustentado”? O branco descendente de europeu e o indígena ou o negro antigo escravizado?
Mas o povo não vê que aquela cena não representa o Nordeste? É, ninguém nem pensa, só sente. Significante e significado se fortalecem. Nós e eles, eu e os outros.
Ela pensa mais um pouco, e corre para um artigo de Freud: “Porque afinal os indivíduos de cada povo se menosprezam mutuamente, odeiam-se, execram-se, na verdade, até em tempo de paz, e cada nação faz o mesmo à outra, é certamente enigmático. Não sei dizer.” (Freud, 1915/2021, f. 116).
Nesse caso, talvez seja sim uma guerra. Uma guerra sobre quem ocupa a casa grande e quem representa a senzala, nas palavras de Gilberto Freyre. Pensando em Gilberto Freyre, aquele ônibus escolar bem que poderia ser novo.
Sim, existem veículos novos e modernos no Nordeste.
Poderia estar cheio de alunos felizes e inteligentes indo fazer um passeio na Fundação Gilberto Freyre, no seu lindo casarão, tombado pelo IPHAN, em Apipucos, um bairro massa de Recife.
Os alunos poderiam participar de uma das inúmeras atividades sobre a identidade cultural brasileira que, olha só, também é produzida no Nordeste.
“A morte do outro era apropriada para ele, tinha o valor da aniquilação daquilo que era odiado, e o homem primitivo não tinha nenhum escrúpulo em provocá-la.” (Freud, 1915/2021, f. 121)
Até quando seremos nós e os outros? Até quando teremos tanta dificuldade com a existência do que não somos nós?
Ela fecha o aplicativo, e vai se ocupar com alguma coisa da casa.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: xenofobia, ideologia, identidade, preconceito, autoritarismo
Imagem: foto publicada pela Folha de SP no Instagram
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