Observatório Psicanalítico OP 518/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Pássaros com asas de lantejoulas

Helena Cunha Di Ciero -SBPSP

Sábado de manhã, estou caminhando na rua. Demorou tanto para começar a prova que não aguentei mais esperar e saí a pé, de mãos dadas com minha filha, para levá-la à papelaria, conforme prometido. Na calçada, escuto entre os transeuntes: “Começou.” E agora? – me pergunto. Paro em frente a um boteco e a televisão está ligada. O garçom, vendo minha menina na ponta dos pés para assistir, nos convida: “Pode entrar, não precisa consumir nada.” Agradeço e vamos até a televisão. Em poucos minutos, tudo está suspenso. O silêncio impera no ambiente.

Eis que entra Rebeca, com sua roupa brilhante repleta de cristais, e caminha com segurança, iluminando os olhos de todos que ali estavam. E então, voa.

É um pássaro? É um avião? É Rebeca Andrade rasgando o céu, parece uma estrela cadente. Lantejoulas que viajam na velocidade de um meteoro, bordadas em seu corpo que atravessa a arena. E ela aterrissa como uma pomba, peito altivo, asas para trás, e sorri. E a arquibancada, emocionada, para e aplaude. E, quando vi, estava junto a estranhos celebrando.

Não estava ligando para as Olimpíadas, confesso, acabo de voltar de férias; é preciso trabalhar. Mas não há como não parar. É preciso contemplar.

Celine anuncia o início do evento, do alto da torre, e, como Rapunzel, joga suas tranças numa voz livre da doença que lhe acomete. Toda de branco, o som viaja pela cidade-luz, como gaivotas anunciando o verão. Curvemo-nos à força dessa mulher que, mesmo sofrendo de uma síndrome rara que atrofia os músculos, reencontra uma potência ao cantar Piaf, seu “Hymne à l’amour.” E, ao final, surpreende-se consigo mesma, numa expressão assombrada com o próprio alcance. E nos ensina que, enquanto o músculo cardíaco ainda pulsar, ainda é possível reencontrarmos nossa voz.

Já havia sido emocionante assistir ao judô na sexta passada, quando Bia, com sua força gigante, chora feito uma criança pequena ao ligar para a mãe após a medalha: “Foi pela avó, mãe, venci pela avó.”

Há algo contagiante nessas heroínas que nos ensinam tanto sobre aquilo que é digno de estar no Olimpo. Estamos todos fartos de semideuses, mas essas atletas chegam a um lugar, entre o céu e a terra; é preciso reverenciá-las. Um mundo tão cindido, tão polarizado, no meio de tanta dor, tantas guerras, que ainda sabe jogar, perseverar, lutar, e isso comove.

Impossível esquecer Babi Domingos, da ginástica rítmica, que fez de seus braços asas de cisne e nos hipnotizou, com a bola que deslizava pelo seu corpo como se estivesse presa em um ímã.

E as campeãs do vôlei lutando valentes até o fim. Ana Patrícia suaviza sua expressão de ódio após a provocação da adversária ao ouvir: “Imagine.” Como uma intervenção analítica que as lembra do aspecto construtivo do jogo, da imaginação. Melodia que as resgata de uma espiral violenta, dissolvendo o clima denso e transformando em beleza algo que estava prestes a explodir. Imagine se uma música pudesse acabar com todas as guerras. “You may say I’m a dreamer, but I’m not the only one.”

Nessa semana, assistimos Rebeca vencer. Mas não apenas isso; assistimos Simone, sua adversária, abraçá-la com ternura e, junto a Jordan Chiles, a outra adversária, prestar-lhe uma homenagem.

É preciso ter uma alma gigante para assumir publicamente que alguém foi maior que você. Um gesto tão majestoso que só poderia ter sido proferido por duas rainhas. O monstro de olhos verdes, como Shakespeare descreve a inveja, dá lugar ao olhar de admiração. E assim essas jovens passam a semear a admiração do mundo todo. Ao final: a cena inesquecível – duas mulheres que competiam se abraçando, sorrindo. Não é fácil ser vencido; ver que alguém pode ser melhor é doloroso. Mas, com dignidade, fica menos duro.

As Olimpíadas nos ensinam algo importante: temos muito a aprender com esses jovens atletas, a geração Z, a chamada geração dopamina, ansiosa. A tão criticada geração “mimimi” talvez ostente uma medalha que nenhuma outra mostrou: a arte de perder não é nenhum mistério, como disse a poetisa, mas, quando tolerada com resignação e verdade, é uma lição.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Olimpíadas, Geração Z, Arte 

Imagem: Jovens atletas mulheres brasileiras 

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Tags: arte | geração z | Olimpíadas
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