Observatório Psicanalítico OP 517/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Pílulas olímpicas 

Julio Hirschhorn Gheller – SBPSP

Faço parte da turma que não consegue acompanhar longas partidas, daí que me tornei um espectador de highlights e pretensioso comentador das Olimpíadas de 2024. Com o encerramento das competições, penso em assinalar alguns flashes de situações que me tocaram.

Primeiramente, vale destacar as três medalhas de ouro obtidas pelo Brasil, que foram todas conquistadas por mulheres: Rebeca Andrade, Bia Souza, Duda e Ana Patrícia. Outro detalhe importante é que a grande parte das medalhas brasileiras foram para o peito de esportistas negros. Que eu me lembre, além das já citadas Rebeca, Bia e Ana Patrícia, tivemos pódio com Isaquias Queiroz e Alisson dos Santos. Muitos destes atletas são provenientes de classes socioeconômicas menos favorecidas, tendo que lutar com sérias dificuldades para atingir o status atual. Certamente, temos interessantes histórias de superação entre eles. Nos esportes coletivos vieram os pódios no vôlei feminino e no futebol feminino. Nitidamente, as mulheres foram nossas representantes mais bem-sucedidas. O fato é que jovens de famílias abastadas ainda buscam a formação em profissões tradicionais como Direito, Medicina, Engenharia ou enveredam pelos diversos campos das áreas financeira e de tecnologia. Os Faria Limers se cuidam com atividades físicas, mas não se tornam atletas de alto rendimento.

Comento as cenas que mais chamaram a minha atenção:

1. Rebeca, após vitória no salto, sendo reverenciada pelas duas americanas que foram prata e bronze na prova. Aliás, diga-se de passagem, esta cena mereceu uma icônica foto que foi surrupiada pelo Ministério das Comunicações do indiciado Ministro Juscelino Filho, colocando um computador no lugar da nossa campeã para divulgar uma campanha de inclusão digital. Esta incrível bizarrice desrespeitava a brilhante campeã. Enfim, o que merece ser salientado na situação é o espírito esportivo prevalecendo no gesto das ginastas americanas, que reconheciam o talento indiscutível de Rebeca.

2. Uma cena pouco lembrada aconteceu com Bia, muito séria e com semblante fechado no pódio, após sua vitória no judô. A judoca israelense, derrotada pela brasileira na final, estava feliz e sorridente com sua medalha de prata e se virou para a brasileira, gesticulando para que ela se animasse. Foi o estímulo necessário para Beatriz abrir um belo sorriso. Tratou-se de outro exemplo de disputa restrita exclusivamente ao momento da competição, não impedindo uma atitude digna e nobre da perdedora para com a vencedora. Aliás, a bem da verdade, todos os medalhistas deveriam ser considerados vencedores e parabenizados pelo desempenho em Jogos de tamanha excelência.   

3. A final do tênis masculino reuniu o sérvio Novak Djokovic, de 37 anos, enfrentando o espanhol Carlos Alcaraz, de 21 anos, o jovem tenista mais promissor e vencedor no ano atual. Uma partida empolgante e muito equilibrada, com inúmeros lances de apuro técnico e tático, teve dois sets empatados em 6/6, que só foram decididos no tie break. Em ambos os sets predominou o “velho” sérvio, que, ao contrário de anos anteriores, vinha de campanha apagada em 2024. Além do mais, havia se lesionado agora em junho, tendo que passar por uma cirurgia de artroscopia no joelho. Ao conseguir o ponto final, jogou-se na quadra. Ajoelhado, soluçava e chorava convulsivamente. As mãos crispadas sobre o saibro denotavam intensos tremores de dedos numa mistura de fadiga e emoção.

Aqui caberia um olhar sobre a carreira de Novak, uma personalidade bastante controversa, que demonstra a complexidade da mente humana, em que forças de vida convivem com aspectos destrutivos. Em 2008 ele ganhou seu primeiro Grand Slam, denominação que abrange os quatro mais importantes torneios do circuito tenístico, realizados na Austrália, França, Inglaterra e Estados Unidos. Na época era um sujeito espirituoso e bem-humorado, que fazia imitações bastante fidedignas e engraçadas de outros tenistas famosos como Rafael Nadal, Roger Federer e Maria Sharapova. Comentava-se que este comportamento, caricaturando colegas, não era bem aceito no meio, de modo que ele desistiu das imitações e continuou competindo, mas ainda em um plano abaixo dos grandes favoritos do público, os multicampeões Nadal e Federer. Sofreu com problemas físicos em alguns torneios até descobrir que tinha uma intolerância ao glúten. Corrigiu a dieta e cuidou do preparo físico, destacando-se pela elasticidade e mobilidade dentro das quadras. A partir de 2011 subiu assustadoramente de nível, de modo a equiparar-se a Federer e Nadal, vencendo-os muitas vezes ao longo dos anos seguintes. Passou a constituir com eles o assim chamado Big Tree, grupo dos maiores vencedores da história do tênis. Seu narcisismo exacerbado e sua sede de ser amado e aclamado não se satisfaziam suficientemente. Parecia meio ressentido por não cair no gosto da torcida, que preferia os outros dois membros do Big Tree. Aparentemente, sentia-se desafiado a superar a tudo e a todos como se dissesse: “Vocês vão ter que me engolir!” (aproveito a agressiva frase proferida pelo falecido técnico brasileiro Zagallo). 

Impulsionado pelo desejo de mais e mais vitórias, tratou de se esmerar técnica e fisicamente, melhorando aspectos de seu jogo e visando alcançar recordes. Obcecado pela ideia de ser o “maior de todos os tempos”, tornou-se o recordista em Grand Slams e o tenista que ocupou por mais tempo o primeiro lugar no ranking. Ainda lhe faltava a medalha de ouro olímpica, que chegou somente agora na quinta tentativa, provavelmente sua última chance. Sem dúvida, ele é um exemplo de talento, fibra, força mental e empenho em busca do êxito. Ele conta que, aos 12 anos de idade, durante a guerra do Cosovo, treinava em meio à ameaça de ter que, a qualquer momento, refugiar-se em porões por conta dos frequentes bombardeios. 

Sabemos, entretanto, que pulsão de morte e pulsão de vida estão intrincadas e a desintricação da pulsão de morte gera destrutividade. Esta pode ser defletida para fora ou operar dentro e contra o próprio indivíduo. Nole, como é apelidado pelos fãs e amigos, é capaz de gestos generosos tais como aplaudir uma boa jogada do adversário em pleno calor da refrega ou criar uma Fundação para ajudar crianças que padecem de dificuldades econômicas em seu país. A saber, vai destinar seu prêmio olímpico de 200 mil euros para a referida instituição. Entretanto, ele é também alguém que nos primeiros meses da pandemia, ocasião em que a OMS recomendava o isolamento e o uso de máscaras, organizou um torneio de tênis em Belgrado, indiferente à crise sanitária e à possibilidade de contaminação na plateia. Em posterior atitude arrogante e onipotente, própria dos negacionistas, recusou-se a ser vacinado com argumentos numa linha natureba. Desistiu de alguns torneios, abrindo mão de pontuações que seriam importantes para a sua classificação no ranking, uma vez que não dispunha de comprovante de imunização para entrar em países que o exigiam. Chegou a ser detido no aeroporto, sem poder entrar na Austrália, por este motivo. Na ocasião, inclusive, tentou obter uma licença médica especial que o dispensasse da vacina, o que seria uma transgressão das regras vigentes e uma atitude eticamente questionável. Teimosia e obsessão funcionavam a serviço de uma recusa dos limites da realidade. Ultimamente, de certa maneira, tem aprendido a moderar sua voracidade e, em entrevistas pós-jogo, procura admitir quando o oponente joga melhor que ele, sem recorrer a explicações que diminuam o valor do adversário. Isto aconteceu nos torneios de Wimbledon de 2023 e 2024 contra o próprio Alcaraz.

4. Noah Lyles, americano, foi o vencedor da prova de 100 metros rasos no atletismo. Dois dias depois foi “apenas” terceiro colocado nos 200 metros, em que era favorito. Ao final da prova desabou, ofegante, sendo necessário conduzi-lo em cadeira de rodas. Revelou a seguir que havia tossido bastante na véspera desta prova e testou positivo para Covid, mas escondeu o diagnóstico para poder correr. Exemplo de onipotência, negação da realidade e estupidez, pois poderia complicar o seu estado clínico, ainda mais que sofre de asma. Com a avidez por mais um ouro, não se importou em poder contaminar os outros corredores nem em prejudicar a si mesmo.  A vontade de vencer, quando extremada, cega a razão.

5. Finalmente, não posso deixar de mencionar a imprudência, irresponsabilidade e soberba da organização francesa dos Jogos, permitindo a realização de competições na água poluída do rio Sena. Está certo que o Sena é um cartão postal de Paris, mas daí a colocar a saúde dos esportistas em risco é algo incompreensível, a não ser por inaceitáveis motivos de ordem comercial.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: arrogância, estupidez, narcisismo, onipotência, soberba.

Imagem: Novak Djokovic – final do tênis masculino 

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Tags: arrogância | estupidez | narcisismo | onipotência | soberba
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