Observatório Psicanalítico OP 516/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Un souffle, um respiro

Marcella Monteiro de Souza e Silva (SBPSP)

No dia 8 de julho, a Praça da República, “quadrilátero vermelho” da cidade-luz, foi tomada por franceses comemorando aliviados mais uma resistência ao partido da extrema direita, o Reunião Popular (ou “Reine” – trocadilho entre a sigla do partido, RN, e a palavra heine, ódio – como é apelidado por parte da esquerda). O povo na rua, em festa na Praça símbolo da Revolução Francesa e dos direitos humanos, me enche de alegria e esperança.

Numa vitória surpreendente, a Nova Frente Popular (NFP), coalizão dos partidos de esquerda (França Insubmissa,  Partido Socialista,  Ecologistas e Comunistas), conseguiu conter o avanço da extrema direita, encabeçada por Marine Le Pen, no segundo turno das eleições legislativas francesas antecipadas pelo presidente Emmanuel Macron. A incrível virada deveu-se ao fato da NFP e o Juntos, partido de Macron, terem formado uma “frente republicana”, espécie de cordão sanitário para impedir que a extrema-direita chegasse ao poder. Agora, novos desafios se apresentam. A Nova Frente Nacional (NFP) prometeu em campanha subir o salário mínimo de 1.539 para 1.700 euros, aumentar os impostos dos mais ricos, recuperar a qualidade de serviços públicos e revogar a reforma da Previdência implementada por Macron. Propostas bastante ousadas num cenário de políticas neoliberais do atual presidente. Neste momento a NFP encontra-se frente a um dilema bastante comum nos partidos de esquerda eleitos em tempos de ameaça da ascensão da extrema direita: manter-se fiel ao programa apresentado na campanha ou ceder à governabilidade. Na mobilização da “frente democrática” as lideranças de esquerda foram as que mais se empenharam. Desenharam rapidamente propostas comuns (ao contrário dos aliados de Macron) e realizaram um intenso trabalho com o eleitorado. Depois da luta e da resposta do povo nas urnas, será o caso de renunciar às suas propostas mais arrojadas? O líder do Partido Socialista, Olivier Faure, não parece disposto a concessões: “Não faremos uma coalizão de contrários que irá trair os votos dos franceses” (…) “A França merece mais do que a alternativa entre o neoliberalismo e o fascismo”. O partido de centro- direita do atual presidente, por seu lado, se recusa a conversar com o partido mais à esquerda, o França Insubmissa.

Além deste desafio interno na “frente democrática”, existe ainda o embate com a extrema direita, pois a vitória da NFP não significa uma derrota dela no parlamento nem como força social.  Os 143 deputados eleitos pela Reunião Nacional representam um aumento de 60% em relação aos eleitos em 2022, o que, em termos práticos, garante maior influência do partido no Parlamento, maior força de bloqueio de propostas mais à esquerda e maior acesso a fundos eleitorais. A adesão ao partido já vem crescendo progressivamente e seus votos não se restringem mais às zonas rurais da França: cada vez mais eleitores de centros urbanos e jovens são capturados por seu discurso de ódio e seduzidos por soluções fáceis para problemas complexos, típicas de governos populistas.

Caso o arranjo francês falhe, as portas estarão abertas ao Reunião Nacional, fortalecendo a extrema direita na Europa e, talvez, no mundo. Esta, atualmente, é internacional e, além de financiamentos cruzados, tem um esquema de troca de experiências e comunicação bastante sofisticado.

A direita radical tem o ódio como projeto político. Projeto cuja centralidade é a construção da ameaça, do perigo do outro. Na Europa esse outro é o imigrante (ou seu descendente), que é colocado como a causa da piora das condições de vida, do desemprego, da perda salarial e do terrorismo, tornando-se assim o inimigo a ser odiado, quando não aniquilado. Sabemos que o ódio é um poderoso instrumento para criar comunidade e sensação de pertencimento, pois favorece um laço libidinal de identificação entre todos os “iguais” que compartilham o ódio ao mesmo alvo. Assim, cria-se uma “comunidade” que divide a sociedade, pois funciona na lógica binária do “se você não é nós, você é contra nós” (ou “quem não for anti-comunista é comunista”). Lógica que exige aderência total e dispensa mediações.

As últimas décadas de políticas neoliberais na Europa resultaram em concentração de renda, precarização do trabalho e do Estado de Bem-Estar Social  (serviços estatais que atendiam à maioria da população), além de altos índices de desemprego e estagnação salarial. Desesperança e ressentimento são subprodutos dessa situação. O neoliberalismo, além de ser um sistema econômico político, tem um enorme efeito subjetivante: em seu culto ao individualismo, à máxima do desempenho e à meritocracia, promove, além do individualismo, o isolamento e a quebra de laços solidários. A desilusão e o desamparo são frutos da falta de participação em espaços coletivos, de identificações outras (simbólicas e não apenas imaginárias) e, sobretudo, de construções compartilhadas.

Diante de um mundo de rápidas mudanças, diverso, incerto e ameaçador para muitos, certezas absolutas e narrativas instrumentalizadas para convencer e arregimentar paixões são muito tentadoras. Daí a credibilidade conferida às fake news e a aderência subjetiva a valores absolutos (“Deus, pátria, família”). Soma-se a isto a internet que proporciona novas formas de socialização (turbinando os mecanismos de identificação grupal típico das massas) e, com isso, novas lógicas de dominação que foram apropriadas por setores mais conservadores da política.

Dias antes das eleições francesas, o Reino Unido, país que inaugurou a onda do neoliberalismo, viu o Partido Trabalhista obter uma vitória histórica frente ao partido conservador no poder há 14 anos. Keir Starmer, ex-advogado de direitos humanos, foi nomeado como novo primeiro-ministro prometendo maior atenção aos serviços públicos, especialmente ao serviço de saúde. O país, decepcionado, com os resultados do Brexit, com prisões lotadas e crescimento alarmante da pobreza infantil, também não optou pelo caminho da extrema direita, dando uma nova possibilidade à social-democracia, à centro-esquerda.

Em um mundo de crescimento da extrema direita a vitória no Reino Unido e a da França, em especial, são um alento, um respiro. Uma brecha para a centro-esquerda/esquerda e, quem sabe, para a democracia.

O projeto neoliberal de um capitalismo que aprofunda a desigualdade é incompatível com a plena democracia, pois esta será sempre uma democracia somente para alguns. Apenas quando pudermos dar uma existência digna, uma possibilidade real de futuro para as pessoas (inclusive uma vida significativa de participação coletiva e inclusão) é que evitaremos a formação de um exército de desiludidos. Se deixarmos para trás uma fração da população, parte dela pode até lutar, se filiar a movimentos sociais, se organizar em sindicatos, mas outra parte, quiçá a maior, cairá na desilusão, na descrença na política e na ideia de que temos que voltar ao passado (sempre idealizado), o “make America great again”. Assim, o combate implacável à desigualdade social me parece fundamental.

E, qual o antídoto ao ódio? Penso que é o amor, mas não o amor do puro sentimento absoluto, ingênuo, da compreensão e concordância total entre todos; e sim o amor como prática, tal como propõe Bell Hooks, como força social transformadora que se traduz na construção de políticas públicas e laços criativos que podem conferir uma vida comunitária e significativa. Somente garantindo uma existência digna para todas as pessoas e colocando a sobrevivência do outro como prioridade é que podemos salvar a democracia do grilhão da extrema direita. É necessária a criação de comunidades amorosas que não se restrinjam à família (que podem ser palco de grandes violências, como sabemos), que façam frente à dureza individualista e possam conferir laços de comunhão alternativos àqueles proclamados pelo ódio.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e sociedade

Palavras-chave: extrema direita, identificação, ódio, neoliberalismo, França

Imagem:  Foto: REUTERS/Abdul Saboor

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Tags: extrema-direita | França | identificação | neoliberalismo | Ódio
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