Observatório Psicanalítico OP 515/2024

         

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Tocar no sentimento 

Ana Valeska Maia Magalhães – SPFOR

Freud viveu em Paris entre outubro de 1885 e fevereiro de 1886. O impacto estético parisiense foi descrito em suas correspondências e recordações: “o exterior brilhante, sua multidão inquieta, a variedade infinita de bens sedutoramente exposta, as ruas se estendendo por quilômetros”. Para além do encantamento com as inovações urbanísticas realizadas pelo Barão Haussmann, Freud, em suas caminhadas, era tomado pela surpresa diante dos movimentos que aconteciam nas ruas: “no Bulevar St. Michel, um grupo de rapazes e moças caminhava à minha frente. De vez em quando, eles paravam de andar e davam alguns passos de dança espontaneamente, sem causa ou motivos aparentes, simplesmente porque eram jovens e estavam em Paris”.

No retorno à Viena ele disse: “Paris significou o começo de uma nova existência para mim”. De fato, a capital francesa, que na segunda metade do século XIX era palco do turbilhão que sacudia a tradição e abria espaço para as vanguardas artísticas revolucionárias, também recepcionava a curiosidade do jovem médico, enfeitiçado pela performance do neurologista classificado por muitos como o mais extravagante da Europa, Jean-Martin Charcot. A alardeada cura para a histeria com o recurso da hipnose, podemos dizer, influenciou Freud em sua mudança de rota, retirando-o das sistemáticas pesquisas em laboratório para a entrada no mundo novo e enigmático das neuroses.

A atmosfera de expansão em Paris vez ou outra desconcertava Freud. Nas cartas ele dizia: “no meu coração sou um alemão provinciano”. No entanto, à medida em que se embrenhava no desconhecido da cidade, ingressando em seus museus, teatros, livrarias e cafés, Freud se rendia ao Eros citadino. Elegeu lugares preferidos, “o terraço de Notre-Dame era meu refúgio predileto em Paris”, fumou charutos durante os jantares na excêntrica residência de Charcot, na qual teve contato com um acervo de antiguidades que provavelmente foram uma semente para o colecionador de peças arqueológicas que Freud se tornou.

Entre a tradição e a novidade Paris se firmou como um marco na vida de Freud. De lá para cá a cidade reafirmou sua vocação festiva. A abertura das Olimpíadas fez jus ao que a finalidade de abrir significa. Abandonar o estádio, ocupar a cidade com apresentações artísticas nas ruas, nas águas do Sena, nos telhados, nas sacadas. Foi um espetáculo de encher os olhos, não somente pela ousadia estética, mas sobretudo pela diversidade que compôs a cerimônia, todas as músicas, danças, corpos e origens se encontraram em Paris na abertura dos Jogos Olímpicos. Da tocha carregada pelas

crianças ao hino ao amor na performance de Celine Dion, o coração bateu mais forte. Algo se enredou no peito, como o reacender de uma chama de esperança.

No mesmo dia da abertura das Olimpíadas o Brasil perdeu um grande artista. O pernambucano José Borges, conhecido artisticamente como J. Borges, foi um poeta, cordelista, xilogravurista que expandiu em suas criações o contato com o imaginário nordestino, povoado por naturezas sertanejas, seres fantásticos, anjos e demônios. 

Curiosamente, a arte de J. Borges está presente no Freud Museum, em Londres, na exposição “Freud e a América Latina”. A curadoria da mostra buscou ampliar o acesso às relações de Freud com a região que recepcionou suas ideias tão entusiasticamente. Vale ressaltar que o maior número de psicanalistas per capita do mundo está em uma cidade latino-americana: Buenos Aires.

Freud nunca esteve na América Latina. Todavia, nutriu uma rede de afetos acesa nas trocas de cartas com latino-americanos, possuiu peças da Cultura Nayarit, do México e da Cultura Mochica, do Peru que estão no acervo do museu em Londres. Seu caráter polímata se derramava em uma vastidão de interesses, muitos deles insondáveis pelos rumos de uma pesquisa biográfica. Por hora, imagino Freud sonhando a psicanálise em seu refúgio no alto da torre de Notre-Dame, “entre monstros e demônios”, como ele descreveu. No rendilhado de tempos e espaços que se conjugam na imaginação associativa, recordo dos seres criados por J. Borges, a amplitude da riqueza nordestina ainda pouco conhecida por outras regiões no Brasil e na América Latina, mas que está lá, no Freud Museum.

J. Borges costumava dizer que o mais importante era “tocar no sentimento do povo”. Na abertura das Olimpíadas imaginei os sentimentos dos povos tocados pela força transformadora da arte, representada nas palavras que Lennon cantou em Imagine: You may say, I’m a dreamer / But I’m not the only one / I hope someday you’ll join us / And the world will live as one.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Cultura; Homenagens

Palavras-chave: Abertura das Olimpíadas, Freud, Paris, J. Borges, sentimento.

Imagem: Abertura das Olimpíadas, Paris, 2024.

Imagem: J. Borges, A Psicanalista, 2020, memorial J. Borges, trabalho integrante da exposição Freud e a América Latina, no Freud Museum, Londres.

*A exposição Freud e a América Latina foi prorrogada e continuará até dia 9 de setembro de 2024.

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Categoria: Cultura | Homenagens
Tags: Abertura das Olimpíadas | Freud | J. Borges | Paris | sentimento
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