Observatório Psicanalítico OP 513/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Contra si

Daniel Delouya – SBPSP

“O poema é capaz de sobreviver a um bombardeio aéreo sem ter o poder de derrubar aviões, mas continua crescendo gradativamente nas profundezas da alma de um povo, transformando-a em energia”. Mahmud Darwich (1983)

A linguagem política me parece simples, embora contenha em seu âmago o grito. Mais difícil é a nossa linguagem, a da psicanálise, que se esforça em resgatar o humano nas margens da asfixia que envolve a luta pela sobrevivência. Essa última costuma prevalecer, feliz ou infelizmente, em detrimento da primeira, da humanidade que, no entanto, não abre mão de reivindicar o seu direito como verdade (histórica, diria Freud), com a qual lidamos, quando bem sucedidos, enquanto psicanalistas. No limite, entre as duas, ou na área de sobreposição entre elas, residem as identificações identitárias, maldita criação necessária, que nos defende, nos poupa de enfrentar a dor do outro, embora essa dor continue a bater à nossa porta, exigindo que nos coloquemos contra nós mesmos.

Freud levou algumas décadas para nomear esta viga ou coluna de sustentação identitária, como a identificação direta, primária e inicial, afirma ele, sem investimento, herdada da história da humanidade, que serve de base para nossa ancoragem em um grupo. Ela se revela como tal só a posteriori, ao lidarmos com o desamparo, erguendo a identidade como pertencimento ao grupo que nos acolhe e nos defende daqueles que estão fora dele. Assim, somos brancos, negros, amarelos, indígenas, homens, mulheres, cristãos, judeus, muçulmanos, sul-americanos, entre outros. Não é surpreendente que a ameaça a essa identidade, na qual se arma o eu, tem consequências muito mais devastadoras do que aquelas que afetam nossas relações matrimoniais ou de trabalho. Romper com o parceiro de vida, pai, mãe, ou filho é muito mais tolerável do que romper com o grupo que define nossa identidade de pertencimento étnico, entre outras.

Com a saída dos ingleses da Palestina e a declaração do Estado de Israel em 14 de maio de 1948, iniciou-se o que os israelenses denominam como a guerra da libertação e os palestinos como El Nakba, a catástrofe, durante a qual 750 mil palestinos tiveram de fugir ou foram, em alguns casos, no calor das hostilidades, expulsos de seus vilarejos e terras, sua pátria (mátria, em árabe e hebraico). Fugiram para países vizinhos, onde alguns puderam eventualmente retornar, enquanto outros não.  

Mahmud Darwich, poeta palestino, um dos maiores e mais importante da língua árabe, tinha sete anos quando sua família e a comunidade de seu vilarejo tomaram o caminho da fuga. Indagando ao pai, esse o respondeu que somos, agora refugiados, recusando-se a explicar do que se tratava. Após reiteradas tentativas fracassadas, o avô se encarregou do menino e o levou para um canto, explicando-lhe: ser refugiado significa perder a infância. Ela nunca mais retornará.

O avô não foi preciso; a infância retornou em cheio para o grande poeta, nunca o abandonou, como Freud sabia. No entanto, o avô também acertou: a infância nunca retorna completamente, especialmente quando é abruptamente arrancado dela, embora seja possível reencontrá-la.

Com a volta da família para Galileia um ano depois, o vilarejo já havia desaparecido, ocupado pelo inimigo, e eles tiveram que se instalar em um  vilarejo próximo. As lembranças da infância do menino da casa, do terreno e especialmente do arbusto (Alfarrobeira, Figueira do Egito) que sua referência durante suas brincadeiras, nunca o deixaram. Quase 40 anos depois, ele escreve para um amigo da juventude: ‘A alfarrobeira é o envelope da minha identidade, e é também a pele da minha alma, se é que existe uma pele para a alma. Ali eu nasci e é lá que quero ser enterrado; esse seria meu único testamento’.

Há um século que esta terra é ensanguentada pelo conflito Israel-Palestina ou pelo sionismo que aparentemente tirou a paz dessa região no Oriente Médio. E, a cada levante palestino, vozes de disputa geopolítica no Ocidente surgem, nos induzindo a tomar partido, julgar quem são os vilões e quem são os mocinhos. Amos Oz se esforçou, em suas conferências pelo mundo, para mostrar que este paradigma só serve para inflamar o conflito e agravar ainda mais as péssimas relações entre esses povos. A confusão aumenta ainda mais devido à racionalização conspiratória sobre os interesses das superpotências.

Essa simplificação medonha, alimentada pelas ideologias de reparação, ignora a urgência de conter a dor necessária ao convívio e à conciliação entre os grupos humanos, aceitando a injustiça relativa, represando as suspeitas persecutórias para, depois de um tempo, de uma longa elaboração, alcançar certa confiança e troca de libido, de vida. Sim, as duas partes “têm razão”, muita razão, aliás: os judeus, pelo longo exílio e pelo anelo à sua terra e união de origem; e os palestinos, que sentem, com razão, que foram enganados e roubados de sua terra que ocuparam por gerações.

A história é complexa e recentemente tentei traçá-la nas nossas revistas Caliban e Ide. Não vou repeti-la aqui. A questão é outra; ela diz respeito ao desapego da razão, desse maldito si, de seu engodo, que em nosso trabalho tentamos libertar de suas façanhas mortíferas de justiça. Para isso, é necessário adotar uma atitude contra si. E isso exige dor! A razão, de qualquer modo, não tem razão, sobretudo histórica. Quais dos povos hoje permanecem os mesmos em relação às suas terras de origem? A Europa, as Américas etc., todas são fruto de invasões sangrentas, e a história do sionismo é, certamente, um dos retornos menos injusto da história.

A hipocrisia é o regime dominante dessa reivindicação de justiça do nosso eu privado e grupal.

O massacre de outubro de 2023, com suas horrendas atrocidades, cometidas pelo grupo Hamas, despertou novamente os israelenses de sua ´bolha´, na qual acreditaram poder manter a ilusão de residir em um país semelhante às tranquilas nações europeias. Assim como o Hamas planejou reocupar o terreno entre o rio e o mar, expulsando o inimigo sionista dessa região, o governo messiânico israelense reagiu com a mesma intenção delirante de eliminar de vez por todas o ´incomodo´ perturbador dos terroristas que ameaçam sua existência, mantida pela opressão de um povo com o qual coexiste.

A carnificina que testemunhamos hoje em Gaza é intolerável. Não se trata de uma guerra entre exércitos, mas da implementação de um poder de Estado arrogante e delirante, que acumula crimes de guerras desde 1948 (Chirbet Chize e Dir Yassin), passando por Kivie (1953), Aldeia Kassem (1956) até Sabra e Shatila (1982). Esses foram episódios de hostilidades pontuais com o apoio de exército, alguns dos quais foram julgados pela justiça e punidos. Nesse momento, a reação do governo e seu exército, inevitável após o massacre, inclui denúncias de ações genocidas, embora não haja um plano verdadeiramente genocida. A ferida que se abriu nessa nova escalada terá consequências difíceis de se prever. Uma solução de paz não é impossível, embora as partes bem-intencionadas de ambos os lados terão que lidar com a dor dessa ferida para estabelecer uma convivência possível no futuro. Chegará a hora em que a tragédia infligida pelo governo israelense sobre Gaza pesará fundo na consciência do povo israelense. Neste momento, apenas uma parte compreende (realiza) as dimensões da tragédia, pois a maioria está ainda sob o impacto do massacre de outubro de 2023, pela ameaça sobre à sua sobrevivência. As alegações do governo israelense, de que a população de Gaza está sempre sendo avisada com antecedência sobre o bombardeio, de que o Hamas usa a população de Gaza como escudo humano, e de que o Hamas localiza suas fontes de fogo e entrada de túneis subterrâneos em habitações civis, hospitais, parques, escolas, quartos de crianças etc., são verdadeiras e comprovadas. No entanto, o bombardeio deste porte não se justifica enquanto houver inocentes na companhia de terroristas. Os crimes de guerra, desta guerra, com seus atos genocidas, são muitas vezes maiores do que daqueles citados acima de outras épocas. Essas que foram sempre assumidas como manchas na própria história de Israel e com as quais qualquer estudante israelense teve de defrontar com dor. Tanto que estão sempre à minha disposição, mesmo depois várias de décadas, sem eu precisar conferi-las.  

Alguns meses atrás, estive em Israel numa visita relâmpago de menos de 100 horas, que para mim foi longa, triste e dolorosa de suportar. Fiz questão de perambular pelas ruas, pegar trem, ônibus e visitar quem estava disposto a me receber. A depressão e o desespero espalhavam-se por todos os ambientes. Num passeio com minha irmã pelas redondezas de sua casa, ela me apontou a casa de uma idosa que perdeu os filhos e netos no massacre do último outubro; em outra, uma médica cristã que perdeu sua única filha na mesma festa dos jovens daquela madrugada; e, ainda outra, de uma aluna do colégio de minha irmã que foi estuprada e assassinada naquela festa. No dia seguinte, visitei um amigo com quem mantenho amizade há mais de 50 anos. A conversa com ele não foi fácil; ele lamentou as posições de meu próprio filho, que ele ama, e que também me parecem exageradas em suas tendências pró-palestinas. Fomos almoçar em uma cidade árabe israelense que ambos adoramos, desfrutando de suas ofertas gastronômicas típicas. O sensível amigo percebeu um certo estranhamento meu em relação aos árabes israelenses, sempre gentis, que nos serviram. Havia neles um leve ar de alívio de uma humilhação que permeava desde sempre o modo condescendente com que nos tratavam, os opressores de sua história. Subliminarmente, o massacre de outubro materializava certa revanche. Senti pena por eles, por nós, pela tragédia que nos embrenha há tantas décadas. Na saída de Israel, no mesmo dia, fico sabendo de tentativas de esfaqueamento por parte de simpatizantes de Hamas, tanto no vilarejo de minha irmã quanto no de meu amigo, que resultaram na morte de um homem e no ferimento grave de outra mulher. Uma crônica triste que me acompanha há décadas.

Eu pertenço a um povo que constitui minha identidade, e fica claro que o que acabei de relatar convocou em mim dor, raiva, revolta, compaixão e tristeza. Conheço e vivo um lado, mas conheço muito menos o outro, mas não me falte a experiência com o outro e o esforço para entender o que ele vive e enfrenta. Convivi com palestinos desde a minha juventude até a vida adulta. E, neste caso, não se trata de um corintiano convivendo com o rival são-paulino; é muito mais profundo do que isso. Para tanto, é preciso se voltar contra si mesmo, questionar a identificação étnica que assola nossa alma (no meu caso, a judaico-israelense), e compadecer-se da história da dor de outro, junto com  minha própria dor, ligada à história que nos envolve.

É o que David Grossmann tentou transmitir em seu livro O tempo amarelo. O que cada parte “merece” remete a marcos históricos diversos, e, portanto, não é pela recuperação dos diretos históricos de cada um que se deve clamar para poder conviver com dignidade um ao lado do outro. É preciso lidar com o pouco que temos, dividir e conviver, reconhecendo o direto de existir e viver de cada um.

Enquanto isso, é preciso encontrar formas de expressar este grito que nossos pulmões não podem mais conter diante desta matança diária, desta chuva de bombas sobre Gaza. Esses ataques equivalem, já foi calculado, a duas bombas atômicas, e continuam ceifando vítimas inocentes de crianças, mulheres e homens, além de inúmeros feridos e refugiados. Grito: não, não, não; três vezes não. Parem, por favor! Devolvam os reféns! Alimentem os famintos! Cuidem de feridos! Reconstruam as casas e a cidade! Devolvam os refugiados! Garantam uma infância para aqueles que ainda possam desfrutá-la, enquanto os adultos de ambos os lados se esforçam para sentar juntos e conversar. Mais uma vez, aqui estou eu, o ingênuo, com a esperança.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras chave: Conflito Israel-Palestina, identidade grupal, contra si.

Imagem: Reuters. Ynetnews. https://search.app/PMyD9aNxeHiaLwM69

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Tags: conflito Israel Palestina | contra si | identidade grupal
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