Observatório Psicanalítico OP 512/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

SUMAÚMA – União da Beleza

Carolina Freitas – SBPdePA

Em busca dos encantos da Floresta Amazônica, fui encontrar e escutar as famosas Sumaúmas. Árvores majestosas tão grandes que servem de proteção. Vistas como sagradas, suas raízes, ao serem batidas, emitem sons que geram uma forma de comunicação, semelhante a um código Morse. Entre uma batida e outra, uma mensagem é enviada. Viajei do Sul, no final de abril de 2024, levando na bagagem toda a literatura devorada durante o ano que antecedeu a viagem, junto a genuínas amigas que se aventuraram comigo.

Chegando em Manaus, nos deparamos com dois mundos: a beleza majestosa do Teatro Amazonas, construído no auge do ciclo da borracha e feito por homens pretos e indígenas escravizados utilizando-se de recursos vivos, humanos e naturais. Sim, o “leite em prece” extraído das Seringueiras, fruto do capitalismo crescente e exploratório de nossas riquezas. Assim, a antagonia do colonizado e do colonizador nos recebe dando as boas-vindas, certamente para aqueles que vão além das aparências. 

No primeiro dia, um vislumbre de toda a magia que nos aguardava. Visitamos o MUSA (Museu da Amazônia), um pedaço imenso da floresta, ali na cidade — ou será que a cidade no meio da Floresta? Essa pergunta nos invadia a cada passo, além do calor ardente que adentrava nosso corpo. Em um mirante do museu, só avistávamos um verde profundo e infindável, belo, imenso e repleto de aromas e sons desconhecidos por nós. À noite, fomos à Orquestra Sinfônica de Manaus, no teatro. Assistimos a óperas conhecidas e outras sentidas pelos poros, que transpiravam pelo calor e emoção.

Seguimos para a nossa embarcação “Navegar é Preciso”, na qual viajaríamos quatro noites e cinco dias num projeto de literatura, organizado pela Livraria da Vila e Aureco Viagens, por meio do qual encontraríamos escritores que admirávamos, e conheceríamos a Floresta junto deles. Haveria também um Pocket Show de Mônica Salmaso. Vivíamos um sonho. Tudo era muito esperado, e chegando lá a contemplação nos acometia a todo instante. Um deslumbre fluindo na vivacidade e movimentos da natureza, nos deixando hipnotizadas em total fascinação.

Entre as Rodas de Conversa, um escritor entrevistando o outro, passeávamos embarcados em botes pelos Igapós (Floresta Alagada), nadávamos com os Botos Vermelhos (que apesar de serem conhecidos como Botos Rosas, após as expedições de Jacques-Yves Cousteau, pela cor deles mimetizada com o Rio Negro, lá são chamados de Botos Vermelhos), focagens noturnas para observação de animais silvestres e uma alimentação que nos deixava surpresas com a quantidade de frutas e pescados locais, nos encantando tanto quanto os Botos. 

Como falar dos banhos no Rio Negro? Talvez o significante seja curativo. Ele nos abraçava, gerando aconchego e um bem-estar no corpo e na alma. Como bem descreve Krenak: “Nas tradições que eu compartilho, não existe poder sobrenatural. Todo poder é natural, e nós participamos dele”. Assim os povos originários entendem a Floreta e os Rios, como seres vivos em comunhão conosco. Por mais de uma vez, eu os vi pedir permissão para navegar nas águas e pisar na Floresta. Quase uma prece. Somente depois disso seguíamos o caminho trilhado pelos guias locais.

Em nosso primeiro encontro com toda a excursão, fomos avisados que ficaríamos sem internet durante todo o trajeto. A viagem teria seu fim no encontro das águas do Rio Negro e Solimões, originando o Rio Amazonas. Ali terminaria o sonho para muitos de nós, principalmente aqueles que vinham, como eu, do Rio Grande do Sul. Vivíamos praticamente um metaverso: enquanto nos encantávamos com a floresta alagada, nosso povo era atravessado pela intensidade dos rios, as enchentes invadiam suas casas, destruíam cidades inteiras, muitos atingidos, infelizmente mortos. A dor implacável e a tristeza inundavam o Sul do País.

Voltamos à literatura, ou “literacura”, o grande motivo da viagem somado ao paraíso ambiental que conheceríamos. Cada um dos escritores com suas particularidades nos alimentou por esses dias, e inclusive até hoje, para suportar tanta dor que encontramos no retorno à nossa querência amada.

Jarid Arraes, com sua intensa escrita, resgatando a história de seu povo com os cordéis, aprendidos com o pai; a doçura e a generosidade de Itamar Vieira Junior em construir seus personagens refletindo sua própria existência; Tati Bernardi rindo de suas neuroses e transformando-as em best-sellers; bem como a alegria e o aprendizado adquiridos com Marcelino Freire. Por último, familiarizar-se com a história pessoal do psicanalista Christian Dunker e todo o seu engajamento com uma psicanálise extramuros foi de uma emoção tão imensa quanto a Floresta Amazônica. 

Escutar a música popular brasileira, pelo canto de Mônica e seus parceiros, embalando nossos sonhos de um mudo melhor, pois, além da beleza natural, nosso país tem compositores, escritores e musicistas que representam nosso riquíssimo patrimônio cultural, nossa própria identidade, com suas vitórias e mazelas. 

Vivemos um momento ímpar. A partilha literária dos que tinham livros publicados e de uma audaciosa como eu, com meu trabalho ABAYOMI – (DES)AMARRÇÕES DO EU (um trabalho escrito sobre as bonecas feitas de tecido e amarações, carregam o significante da resistência feminina e valorização do povo preto e na inclusao de todos na sociedade atual), foi realizada nesta edição pela primeira vez. Escutar esses escritores iniciantes e talentosos rendeu muito aprendizado. Experimentamos trocas valorosas e nos reconhecemos como entusiastas da literatura e da escrita. Tudo vivido como um ato de existir e como forma de contar nossa história, além de engajamento político e social.

Após avistarmos o encontro das águas e sua magnitude, a internet voltou e o sonho foi interrompido. Como já dizia o velho Freud, a Transitoriedade se impunha e não havia nada que pudéssemos fazer. Tragicamente, aqui no Sul, muitos já estavam desabrigados e vivendo um pesadelo povoado por águas que há pouco nos encantavam e, agora, nos assustavam, além de todo o horror que se passava aqui com os refugiados climáticos e animais sendo resgatados. Nós nos separávamos, após tantas vivências e amizades afloradas. A maioria iniciava a tentativa de retorno para casa, eu continuava para um trabalho voluntário com Povos Originários, Ribeirinhos, populações vulneráveis e periféricas de Manaus e Assentamentos Indígenas que reuniam várias etnias em um mesmo território.

Entre o compromisso com o outro e o retorno antecipado devido à catástrofe climática, decidi pelo propósito acordado. Certamente foram dez dias de dúvidas e angústias, entretanto, o desejo foi soberano. A decisão foi norteada pela verdade que senti, o outro, esse que também faz parte de mim. Participei de um voluntariado coordenado pelo Caritas. Aprendi muito. Evocando Ailton Krenak novamente: “Vi as diferentes manobras que nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência dos povos”.

Foram oficinas de Abayomis, palestras em escolas, grupos com educadores, encontros em assentamentos indígenas de trocas mútuas, nos quais conheci muito de sua cultura e seus traumas. Um exemplo, a proibição imposta pelos colonizadores de falarem suas línguas originárias, mesmo já sabendo, a escuta e o testemunho recriam a memória coletiva e nos toca na carne e no ser com uma profundidade indizível.

O encerramento foi surpreendente, fui convidada para falar no PRÉ-FOSPA, Fórum Social Pan-Amazônico, cujo tema era “Resistência Feminina”. Fazia todo o sentido estar lá, pensando com eles sobre os efeitos climáticos e suas consequências. Certamente, era a única Sulista e Psicanalista entre eles, ativistas ambientais, sociais, culturais e lideranças Indigenas. Muito foi falado sobre as secas dos Rios da Amazônia no ano anterior, a morte de inúmeros peixes, botos e animais da Floreta e a relação das enchentes no Sul. Afinal, as inundações são reações climáticas, seriam, metaforicamente, os gritos de pedido de socorro vindos das raízes das Sumaúmas ou os Rios Flutuantes formados do volume de água extraído da atmosfera e desviados para o Sul, uma reação da Natureza à mão humana devastadora.

Do que escutei, o mais impactante foi a contaminação por mercúrio e a morte em massa dos Yanomamis, da flora e da fauna também contaminadas. Contudo, a fala do Cacique da Aldeia Gavião, jurado de morte por combater garimpeiros e o excesso de resíduos nas águas, foi comovente e assustadora:

— Que a morte me encontre vivo e lutando.

Volto e vejo o meu povo vivo e lutando contra a força dos Rios. Entendo que seja muito difícil pensarmos com clareza no momento, por outro lado, sabemos das falhas no comando para evitar essa catástrofe climática e, consequentemente, humanitária. Quando o capitalismo desenfreado nos acomete, descartamos, destruímos e, lamentavelmente, não reaproveitamos, não reconstruímos o que por nós foi e continua sendo dizimado. “Vamos escutar a voz dos rios, pois eles falam. Sejamos águas, em matéria e espírito, em nossa movência e capacidade de mudar de rumo, ou estaremos perdidos”.

Poderia ter citado outros autores, entretanto, neste ano, Aílton Krenak foi agraciado com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, e isso é visto por nós como uma quebra de paradigma. No meu entender, pela colonização estrutural que carregamos, ele faz parte dos Povos Originários e somente agora teve sua escrita e voz legitimadas. Ele ainda conta, em seu último livro publicado, Um rio um pássaro, que quando seu povo canta para uma Sumaúma, o espírito da Floresta é chamado, trazendo força.

 Evoco o canto às Sumaúmas para trazerem força ao meu povo, que também é o seu, afinal precisamos resgatar nossa origem e ancestralidade através da nossa oralidade, escrita e luta. Respeitando e bendizendo por vivermos num território onde a Floresta Amazônica vive e reverbera vida. Juntos, pela reconstrução do ser e pela beleza da união, agora somando uma pluralidade no cuidado com o Rio Grande do Sul.

Sumaúma

Irmã de causa e de casa

Do raso voo de uma asa

Do riso bom de uma dança

Dos olhos dessa criança

És manhã, és sumaúma

A mãe de todas as plantas

A canção que a paz reclama

A voz maior, quando canta…

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade; Emergência Climática 

Palavras-chave: Floresta Amazônica, Literatura, Enchentes.

Imagem: Sumaúma , floresta amazônica , maio/2024, arquivo pessoal

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Tags: enchentes | Floresta Amazônica | Literatura
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