Observatório Psicanalítico OP 511/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Democracia, Fetichismo e Religião: o homem automático, não pensante 

Valton de Miranda Leitão – SPFOR

O meu livro A Aura Enfeitiçada – o fetiche como espetáculo antecipava o que hoje presenciamos no mundo capitalista. Quando escrevi o citado trabalho, procurei mostrar como a categoria fetiche, em Freud, tinha importantes aproximações com a mesma noção, em Marx. A magia e a epifania tem relação com a dimensão assumida pelo objeto, ou como mercadoria ou como recusa da castração (foraclusão). 

Robert Kurz, grande pensador alemão com quem tive o prazer de conversar algumas vezes, estendeu o conceito de fetichismo como talismã que permeia as relações entre sujeitos na sociedade capitalista pós-moderna. O fetichismo como consequência da fantasmagoria em que se transforma a mercadoria é conceito que percorre O Capital de Marx, e Lukács tematiza a questão em História e Consciência de Classe. A noção de valor-trabalho assume uma dimensão sobre a qual a crítica de Kurz vai incidir. O fetiche na atualidade capitalista já está prefigurado tanto na magia totêmico quanto no ouro (dinheiro) ponto de encontro entre Marx e Freud. Desse modo, o mito da caverna de Platão seria redesenhado, pois ninguém escapa da ilusão das imagens projetadas na sua parede interna para alcançar o Sol do Real. 

Não tenho aqui a intenção de desqualificar a dimensão civilizada da vida democrática, mas tirar o véu que encobre seu uso opressor. Assim, é impossível, como diz Badiou, lembrando a peça de Moliére, A Doença Imaginária, retirar a máscara do capitalismo que se esconde por detrás do termo democracia. O sujeito humano é eclipsado pelas relações de fetiche, tornando-se tão fetichizado quanto qualquer mercadoria. O fetiche é então uma categoria a priori que percorre a história e alcança seu apogeu no capitalismo de mercado. O dispositivo fetichizante vai impregnar o Estado capitalista em toda a sua extensão. O sujeito automatizado e instrumentalizado pelo fetichismo está na mesma linha de valor que a categoria dinheiro. 

Disso tudo resulta que o conceito democracia não passa de uma máscara para esconder a acumulação capitalista. A ideia do autômata, que já está em Marx, vai aparecer em Freud na repetição fetichista do perverso. O fetiche é então o combustível que impulsiona as classes com seus preconceitos sexuais, raciais e religiosos. O culto ao dinheiro não é senão uma das formas da religião que cultua a democracia. A democracia é então utilizada como forma que desmente seu conteúdo. A instrumentalização midiática estabeleceu os EUA como modelo de democracia e, dessa forma, nenhum país que escape ao desenho poderia ser chamado democrático. Assim, os Estados Unidos impõem o mais bárbaro bloqueio a Cuba, enquanto Israel massacra os palestinos em nome da democracia. 

Por outro lado, as autoridades dentro das instituições que se apresentam como defensoras da democracia, não aceitam a menor crítica a tais procedimentos. Quando Adriana Augusta escreveu o seu excelente texto, A Gazeta do Amanhã (OP 453/2023), não foi somente criticada, mas também hostilizada por muitos psicanalistas que dentro do establishment possuem autoridade. A questão é: quem possui autoridade e, se possui, quem a outorgou? Isso representa um dilema, pois toda instituição é heterônoma e não aceita facilmente autonomia de seus membros. Desse modo, estamos diante de vários impasses sobre os quais é importante refletir. As autoridades econômicas são as mais consultadas pelos adoradores da mercadoria e seu culto fetichista ao dinheiro equivale a uma religião. O psicanalista não pode se autorizar como detentor do saber psicanalítico, pois isso o enquadraria na categoria de sujeito religioso.

O capitalismo assume a forma de uma religião no extremismo de direita que flerta com a guerra. O feitiço da mercadoria cria o comprador do mesmo modo que o fetiche do chicote gera o sádico em busca de um masoquista competente na relação sexual. É nesta ciranda do mercado sexual e mercantil que os objetos fetichistas se impõem aos homens. A doença compulsiva de comprar não é menos danosa do que a de bater para gozar. O personagem Josef K em O Processo, de Kafka, está preso nessa armadilha da qual é impossível escapar. A tortura praticada no quarto de despejo do banco onde K trabalha é exemplar para mostrar como o homem é desfeito de suas identificações e condensações egóicas para que reste somente o autômata, o indivíduo robotizado. Não há Lei que o proteja dessa dinâmica fetichista, pois é dentro da própria normatividade legal que o processo é conduzido. Dessa maneira, tal como o camponês na porta do Fórum ninguém entra na Lei. Finalmente, Josef K é executado sem jamais ter sabido de que crime era acusado.

O mundo ocidental, tal como escrevi em O Inimigo Necessário, tem seu núcleo motor entre o ouro e o banco que o mercado instrumentaliza. Nesse dispositivo, não há lugar senão para milionários e trilionários. A manutenção desse status quo, desde o término da Segunda Guerra Mundial, vem sendo mantida pelos grandes conglomerados midiáticos dominados pelo capitalismo. O surgimento da internet com o algoritmo e a inteligência artificial tornou esse domínio ainda mais amplo. Além disso, o sistema de dominação, que inclui racismo e pobreza, encontrou na manipulação da crença religiosa fanatizada um poderoso aliado. A consequência disso é que as classes oprimidas, vítimas dessa arquitetura chamada democrática, votam cada vez mais nos representantes da opressão (Milei na Argentina, Orban na Hungria).

Além do executivo, os poderes judiciário e congressual abrigam cada vez mais representantes do pensamento de extrema-direita. Naturalmente, é sabido que este avanço vai sendo contido, tanto pelas forças progressistas internas quanto pela nova configuração geopolítica, comandada por China e Rússia. O fato é que há uma crescente descrença na democracia burguesa com concomitante incremento na crença dos regimes de força. A epifania fetichista dessa visão de mundo aceita facilmente a ditadura com seu cortejo de horrores como solução. O Rio Grande do Sul é modelar para mostrar tudo o que foi dito acima, pois votou maciçamente em Jair Bolsonaro na última eleição presidencial, com o enorme percentual de 70%. 

Evidentemente, não é uma população tão desenformada, mas sofreu a imensa manipulação que acabo de descrever. É claro que lamentamos profundamente a tragédia da enchente e da negligência dos dirigentes locais, mas seguramente, indica como a democracia é atualmente corroída por dentro. A compreensão de que a democracia se tornou, por um lado, um instrumento de ditadores (Trump) e oportunistas, como assinala a inteligência popular através do humor e da arte, e por outro, instrumento de grupos nazifascistas. Para concluir esta breve digressão vou trazer um pictograma. Uma colega muito inteligente me contou que viu certa vez uma pichação dirigida ao prefeito de sua cidade, dizia: “a democradura não consegue preencher tantos buracos, pô Dodó”!

O pensamento como função crítica e transformadora não pode conviver com o homem automatizado e, por isso, fazer o presente exercício é fundamental.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Democracia, Fetiche, Pensamento, Autômata. 

Imagem: O Pensador, Auguste Rodin 

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Tags: Autômata | democracia | Fetiche | Pensamento
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