Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O Talibã é aqui?
Susana Muszkat – SBPSP
Sábado, 15 de junho, leio a manchete da Folha de São Paulo: “Projeto iguala lei de aborto no Brasil à do Afeganistão”. Releio, leio a matéria e várias outras nessa mesma edição, onde colunistas, em massa, se indignam nos diferentes cadernos e editoriais deste jornal. Faz-se alusão ao “Conto de Aia”, que me parece ir bem ao ponto: ficção distópica onde mulheres são seres escravizados, a serviço dos homens.
Que o congresso brasileiro tenha a desfaçatez de propor uma alteração na lei que se alinha com as do Talibã, grupo fundamentalista religioso, autodenominado, parafraseando Foucault, de vigiar, controlar e punir mulheres, submetendo-as à malfadada e mofada “pauta de costumes”, despertou a devida ira e manifestações de feministas em todo o país, bem como daquelas pessoas que ainda não confundiram todos os termos da equação de direitos e deveres dos cidadãos e governantes de um país.
Pauta de costumes. E de que costumes exatamente se trata?
Em outro artigo, comento a inversão da versão amplamente difundida do mito de Adão e Eva, onde Deus, para aliviar o homem de seu tédio solitário no paraíso (e no paraíso existe tédio solitário?), presenteia-o com a mulher, retirada de um pedaço de sua costela, parte pouco nobre de seu corpo, diga-se de passagem. Nessa inversão, a mulher torna-se produto do corpo do homem, trazida ao mundo para atender a este, resultado da interação sublime entre o homem e Deus! Na sequência, o homem será expulso do paraíso (será que estamos falando da expulsão do paradisíaco interior do corpo da mulher, o útero materno? Ah… e será que a proibição do aborto tem relação com isso? mas prossigamos…), o homem é expulso do paraíso por culpa exclusiva da mulher, que ousa distrair-se do homem ao interessar-se pela serpente do conhecimento. Terá Eva desejos próprios? Esse paraíso sonhado pela narrativa masculina, outorgado-lhe por Deus, e interrompido pelo ato da mulher, merecerá o eterno castigo de não poder ser dona de si mesma, de seus atos e de seus desejos?
Esse tal PL do estuprador apresenta-nos, uma vez mais, com uma inversão dos termos da equação, alterando leis já existentes: estupro como crime hediondo, o estatuto das crianças e adolescentes, o direito ao aborto quando resultado de estupro, anencefalia ou risco de vida da mulher. É uma plena inversão moral, sob pretexto de defesa da vida. Novamente convocando a Deus, procuram dar legitimidade à tal inversão, alegando que o dito aborto seria contrário aos Seus desígnios e mandamentos. Mas então quer dizer que Deus não se importa com as mulheres? Nem com as crianças e jovens estupradas e condenadas a serem mães? Estas sim, assassinadas de sua condição de crianças. Faria destes homens pais desses pobres bebês? Será que devemos ensinar um pouco de psicanálise a este Deus?
Entendo esta proposta abjeta como expressão de um sintoma. Sintoma de um certo tipo de masculinidade, representada de forma escancarada pela maioria de nossos parlamentares, composta majoritariamente por homens brancos, instalados numa posição precária de poder e que, longe de se preocuparem com seu dever e para o qual foram eleitos, ocupam-se em se digladiarem a fim de manterem sua posição e status-quo, perversamente, às custas do povo brasileiro.
Procuram justificar o injustificável: que nossas crianças-meninas, as adolescentes e jovens mulheres, se submetam à violação traumática de seus corpos e mentes, e que não ousem recusar-se ao gozo perverso do estuprador (todos homens!), nem tampouco desejem livrar-se da invasão do interior de seus corpos por fetos indesejados, possíveis representantes destes homens, simulacros de adultos, habitados pelo infantil, que reclamam o direito exclusivo sobre suas representantes maternas, as mulheres.
Nós, analistas, sabemos muito bem, desde Freud, que o sintoma é uma solução de compromisso que carrega em si o desejo recalcado. Ou seja, contém a própria realização de um desejo disfarçado. Freud, realmente genial, foi um homem de seu tempo, acreditando que a inveja era a do pênis, adereço exclusivamente masculino, e que o temor à castração teria a ver com a perda deste órgão, ao qual se associava a ideia de potência fálica. No entanto, esse mesmo Freud, ao formular o revelador pai da horda primitiva em “Totem e Tabu”, o Todo-fálico como retomará Lacan, concederia a este homem mítico o poder sobre todas as mulheres. Assim, vemos revelado, em Freud mesmo, que o poder do pai da horda está sustentado em seu domínio sobre as mulheres que devem submeter-se à sua força. Pois, uma vez que se recusem, a precariedade do fantasiado desejo Todo-fálico fica amplamente revelada.
Temos aqui mais uma inversão, onde a inveja do pênis-suposto-falo é, isto sim, a inveja e fascínio do interior do corpo da mulher, com seus mistérios e potência reprodutiva. Esse corpo, inacessível senão com o consentimento da mulher, desperta em homens ressentidos com o fracasso do fantasiado desejo Todo-fálico o temor de que se revele seu mero pênis-oscilante-castrado.
Desta forma, o desejo de instituir leis que regulem os corpos femininos, da mesma forma que aquelas do Talibã, explicita o desejo de imaginariamente transformar mulheres em seres sem capacidade de pensar por si, sem autonomia sobre seus corpos e seus desejos, como crianças dependentes de seus cuidados. O sintoma deste tipo de masculinidade a que me refiro faz com que nossos congressistas, travestidos de adultos, abusem de lugares de poder que lhes foi outorgado por uma democracia torta onde a desigualdade de gênero impera, admitindo desvarios tão absurdos quanto este execrável projeto de lei.
É preciso que uma irmandade de mulheres e homens sem-medo-de-serem-castrados retomem democraticamente “Totem e Tabu”.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: aborto, PL 1904, Totem e Tabu, inversão da versão, desejo, mulher
Imagem: ilustrador Cris Vector (Instagram: @crisvector)
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