Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Em louvor aos estupradores
Silvana Rea – SBPSP
O projeto de lei 1904 do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que pode fazer a vítima de estupro ter pena maior que a do estuprador, expõe as entranhas mais perversas e bárbaras dos representantes de certos setores de nossa sociedade.
É fato que a proposta tem parcialmente o objetivo de minar a aproximação da presidência com as forças evangélicas, contrárias ao direito a abortar. Mas a emenda ao artigo 128 do código penal que o deputado propõe, altera a determinação de que não se pune o aborto praticado por médico em caso de estupro, equiparando este aborto a um homicídio simples.
Passado o primeiro impacto que gerou repulsa, tento organizar algum pensamento.
Em pleno século XXI, parece que o ideário dos proponentes se apoia no paradigma da diferença sexual do século XVIII, fundado na existência de dois sexos, distintos e bem diferenciados. Sustentado pelo fator biológico, anatômico e fisiológico, ele determina que homens e mulheres são de essências diferentes, naturezas diferentes e, portanto, diferentes os seus lugares sociais e a respectiva importância.
Em Gramáticas do erotismo, Joel Birman (2001) propõe que é o jogo do sexual e do reprodutivo que marca o poder da sociedade patriarcal na relação entre os sexos. Como o homem se deslocava livremente entre os espaços social e público, familiar e privado, a ele era permitido o duplo exercício erótico e reprodutivo. E como a mulher se movimentava dentro do espaço familiar, a sua sexualidade era identificada com a reprodução da espécie. Nesses termos, qualquer recusa à vocação reprodutiva do seu corpo seria ameaça de desordem.
Estas são as bases para a construção de um ideal do feminino de submissão à função procriativa, onde qualquer autonomia em relação ao próprio corpo e desejo coloca a mulher na condição de perigosa ou de segunda categoria.
Ou seja, falamos aqui do potencial ameaçador da mulher perante certos homens. Jacques André (2024) fala que a dominação masculina é reativa ao poder das mulheres. A capacidade que a mulher tem de gestar, de ser mãe tanto de filhos quanto de filhas, pode servir como uma confissão de fraqueza masculina, de que há um poder que lhe escapa. Daí a necessidade de se apropriar do corpo feminino, cujo ápice da violência seriam o estupro e o feminicídio. Diferentemente do pênis, diz ele, o falo é narcísico; o Ser supremo que personifica a dominação.
Poderíamos pensar que a fragilidade masculina encontra expressão e satisfação neste tipo de violência travestida de legalidade? O projeto de emenda de Sóstenes legitima o estupro ao homem ressentido pela perda de poder, que alguns estudiosos indicam como o eleitor majoritário do PL? O humilhado exibe sua força, ferindo e punindo de forma odiosa o pretenso humilhador?
O projeto de lei 1904, para mim, já entrou na história brasileira como o louvor ao estuprador, incidindo em gestação ou não. Ao homem, nenhuma contenção. À mulher, a culpabilização e a punição. Aliás a ela, múltipla punição: ser vítima de um estupro, ficar grávida do estuprador, ser condenada como homicida em caso de aborto, sofrer a violência do próprio procedimento abortivo. Isso sem falar na complexidade dos danos quando o abuso sexual ocorre com uma menina; o abuso de vulnerável. Ou seja, estamos falando de uma cadeia de retraumatizações, do risco de ser uma experiência impedida de tecer uma rede de representacional e que encontra uma escalada de horror até o escárnio diante da dor humana. A dessubjetivação completa: ser reduzida a um corpo tratado como objeto e posteriormente, punido como abjeto.
Só me resta desejar que a bancada que apoia este projeto, composta por homens e mulheres, arda no fogo do inferno.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: aborto, estupro, feminino, masculino
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