Observatório Psicanalítico OP 508/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

A luta de Maria, os Red Pills, transfobia, 

PL 1904 e o tempo espiralar

Lina Schlachter Castro e Ana Valeska Maia Magalhães – SPFOR

Houve um tempo no qual escrever a História significava contá-la através dos grandes acontecimentos em uma perspectiva linear. Se essa forma de narrativa ainda mantém seu vigor, a nova historiografia associou à tradição outros elementos de importância: a arqueologia do cotidiano, o imaginário social, as práticas comunitárias, o microcosmo do rés-do-chão dos dias dos excluídos nas narrativas oficiais. 

Nesse processo no qual ainda há tanto o que narrar, associa-se uma nova perspectiva do tempo, elástico, espiralar, no qual o passado faz-se movediço, rodopia, e toca um ponto do presente-futuro.

Os recentes acontecimentos no Brasil inquietaram nosso olhar perante a espiral do tempo e a malha complexa que os entrelaça. Confrontadas, ofertamos o movimento miúdo de nossas palavras, ainda que contar seja muito, muito dificultoso, como nos disse Guimarães Rosa.

A luta de Maria

Pratos lançados contra as paredes, copos jogados no chão, plantas regadas com água fervente, palmadas crescentes nas filhas e uma série de cacos para juntar.

No ano de 1983 a rotina familiar de Maria era alterada por atitudes cada vez mais agressivas do marido, que transformava o que deveria ser um lar em um palco de gestualidades intimidadoras.

Até que, um dia, o estampido. Maria levou um tiro nas costas, ficou paraplégica.

Quatro meses após cirurgias e tratamentos hospitalares, Maria voltou para casa aos cuidados do homem que alvejara o tiro. A versão contada na polícia era de que o casal sofrera uma tentativa de assalto, fato que posteriormente foi esclarecido como inverídico pela investigação policial. Por quinze dias, o marido manteve a mulher em cárcere privado e tentou eletrocutá-la durante o banho. 

Após conseguir sair da convivência com o agressor, demorou oito anos até que os crimes fossem finalmente julgados. Entre julgamentos e recursos jurídicos, ao final a prisão não foi efetivada. O agressor ficara impune.

Maria, contudo, não se calou. Seu caso ganhou dimensão internacional. Em 2001, dezoito anos após passar por tentativas de feminicídio, o Estado brasileiro foi responsabilizado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.

A luta de Maria da Penha ganhou ampla visibilidade e tocou a história de tantas mulheres anônimas submetidas à violência doméstica diariamente em nosso país. A lei n. 11.340, sancionada em 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, constituiu um importante passo na prevenção, punição e busca de erradicação da violência doméstica contra mulheres.

Maria da Penha conta a sua história no livro “Sobrevivi… posso contar”, o que nos leva a destacar a importância de narrar um acontecimento nas histórias das mulheres. 

Nossos direitos civis, políticos e sociais são conquistas recentes. A nossa voz que hoje ecoa no espaço público surgiu após muita luta. Há não tanto tempo, ela era conduzida apenas à esfera do doméstico, onde as violências do patriarcado repousavam culturalmente aceitas. “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, costumava-se dizer. 

Se hoje o cenário é outro, e “metemos a colher”, o tempo vem nos assombrar com seus giros. Maria da Penha voltou a ser ameaçada, dessa vez por grupos misóginos de extrema direita, conhecidos como “Red Pills”.

Red Pills

Para quem não sabe, o termo faz referência ao longa-metragem Matrix (1999). Nessa narrativa ficcional, quem ingerisse a pílula vermelha deixaria de viver em um mundo de ilusões. Distorcendo a mensagem do filme, os Red Pills defendem que, ao tomar a pílula vermelha, passam a ter acesso à realidade de que o mundo favorece as mulheres. Alegam que atualmente os homens estão sendo “quase” escravizados pelas mulheres e, portanto, querem direitos iguais aos delas.

Esse grupo extremista execra ideias feministas, defende a racionalidade do macho e estimula a cultura de “desenvolvimento masculino” propagada por influenciadores. O cerne do movimento é o resgate de valores de supremacia masculina. Há uma defesa de pautas semelhantes às dos “Vikings” que invadiram o Congresso dos EUA em 2021. Na época, tal grupo declarava que as mulheres deviam ser caçadas, servindo apenas para procriação.

Essa problemática nos faz pensar sobre as reações diante de experiências de fragilidade e desamparo. Esses atos violentos podem ser lidos como uma tentativa de restaurar um narcisismo perdido? Ou, no caso dos Red Pills, uma busca de restabelecer uma hegemonia ameaçada por lutas e conquistas feministas?

As ideias “masculinistas”, que disseminam o ódio às mulheres, estão em assustadora expansão: os canais Red Pills no YouTube já somam mais de quatro milhões de seguidores, e as visualizações de seus vídeos já estão em bilhões. Os riscos são vários, sendo o mais evidente deles o aumento de crimes contra as mulheres. Aqui no Brasil, de acordo com dados de 2023, a cada 15 horas, uma mulher morreu em razão do gênero, majoritariamente pelas mãos de parceiros ou ex-parceiros. 

Maria da Penha, sendo o maior símbolo da luta dos crimes contra as mulheres brasileiras, portanto, tornou-se alvo da misoginia dos grupos extremistas.

Transfobia – O que é uma mulher?

Freud certa vez perguntou: “o que quer uma mulher?”, ao que, inicialmente, perguntamos: “o que é uma mulher?” Conceito plurívoco, uma mulher são sempre muitas. Nesse sentido, reiteramos a fala da primeira deputada negra e transexual, Erika Hilton. Após sofrer comentário transfóbico em audiência na Câmara dos Deputados, argumentou que o conceito de mulher não é homogêneo, mas diverso e plural. Apoiando Erika Hilton, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, que estava presente, defendeu que o objetivo da pasta é promover e garantir políticas públicas para mulheres brasileiras nas suas mais variadas realidades.

PL 1904

Ainda em relação à pergunta de Freud, respondemos: poder exercer a nossa sexualidade e, com isso, deter direitos em relação ao nosso próprio corpo e expressar a nossa voz na arena democrática. 

O projeto de lei 1904, que objetiva penalizar a mulher que realiza o aborto legal com mais de 22 semanas, tipificando-o como homicídio, constitui uma face da barbárie difícil de contar. No rés-do-chão dos dias, essa lei penalizará mulheres e meninas que foram estupradas (uma das três situações em que o aborto é permitido no Brasil) e estão em situações de vulnerabilidade social. Há uma retraumatização pela criminalização do aborto ou, na outra hipótese, por ser forçada a ter um filho do estuprador. No caso de uma menina que engravida, há ainda a dor da infância roubada. Uma menina ainda não é uma mulher.

No torvelinho da espiral, o que os psicanalistas propõem?

Por fim, enquanto os agressores misóginos expandem suas ações extremas, jogando impropérios, buscando exterminar a história de conquistas dos direitos das mulheres, impondo leis e retrocessos, fazendo os tempos se tocarem na espiral do nervo das mentalidades medievais, habitadas por Vikings e patriarcas radicais, como está a nossa, psicanalistas? Quais são as prováveis misoginias e violências que podemos estar praticando na escuta contemporânea? Como podemos colaborar para a diminuição dos crimes contra mulheres e meninas? Qual a importância de um posicionamento de nossas instituições frente à sociedade? O que temos, afinal de contas, a ver com isso?

 (Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: Maria da Penha, violência de gênero, red pills, tempo espiralar, direito ao aborto. 

Imagem: Mulher-espiral, Louise Bourgeois, gravura, 2006.

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Tags: direito ao aborto | Maria da Penha | red pills | tempo espiralar | Violência de gênero
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