Observatório Psicanalítico OP 507/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Anatomia das quedas 

Rosemary de Fátima Bulgarão – SBPSP

No filme “Anatomia de uma queda”, a dupla de roteiristas Justine Triet e Arthur Harari, utilizou temas aparentemente banais como família, casal, filho e tribunal, para criar um drama de suspense que consegue representar bem, tanto a complexidade da mente humana, como a guerra de narrativas que caracteriza a atualidade.

A direção de Triet, sintonizando diálogos, músicas fortes e repetitivas, cortes de cena, jogos de iluminação e movimentos de câmeras, produziu mais que um filme, produziu uma bela experiência.

Na cena de abertura, primeiro escutamos as vozes de duas mulheres e, em seguida, aparece a imagem de ambas conversando, sugerindo um clima que deixa entrever sensualidade. Sandra é uma escritora de sucesso e está sendo entrevistada por uma estudante até que uma música ensurdecedora impede a continuidade da entrevista. Constrangida, Sandra explica que seu marido, Samuel, está trabalhando no andar acima e sempre coloca música alta para trabalhar. As duas se despedem e Sandra sobe as escadas.

Na cena seguinte, o filho de 11 anos do casal, Daniel, que é deficiente visual, está retornando de um passeio com seu cachorro Snoop, quando encontra o corpo de seu pai estendido na neve. Há um grande impacto e daí em diante somos capturados pelas identificações com os conflitos, sofrimentos e as mesmas dúvidas dos personagens.

O filme aparentemente vai girar em torno da morte suspeita de Samuel. Suicídio? Queda acidental? Homicídio? O mote de morte suspeita funciona como uma ferramenta precisa para provocar dúvidas e colocar em queda tudo que acreditamos ser uma verdade fechada.

As cenas de tribunal demonstraram isso ao propor a pergunta – o que é a verdade? E vamos (re)descobrindo que tudo que temos são aproximações/versões da verdade e que julgar é por nossa conta e risco. Essa constatação fragiliza e rompe fantasias de onipotência. Sem o chão das certezas rodopiamos feito aqueles dançarinos dervixes, em um vórtice de ideias, como nomeou Fábio Herrmann (4).

Outra cena, logo no início do filme – uma bolinha, em queda, escada abaixo, pode ser entendida como uma síntese de todas as quedas que vamos assistir e sofrer ao longo do filme.

A pergunta que me acompanhou – como é que se disseca uma queda? E qual queda? Da mulher independente e empoderada? Do império da masculinidade e do machismo? Ou a queda da ingenuidade da criança? Da família? Do casal? Da busca impossível da verdade e da certeza? Dos limites entre ficção e realidade? Da sexualidade monolítica? Da paternidade? Da maternidade? Desde que Freud (2) desbiologizou a anatomia, revelou que ela transcende limites fixos.

Anatomia das quedas…o filme tensionou e rompeu com as definições calcificadas de todos os temas que tocou. E revelou, sem pudor, a complexidade da vida e da mente humana, assim como das escolhas que precisamos fazer. Na perspectiva do filme, nada é plano, os sentimentos possuem várias camadas e circulam em diferentes dimensões da nossa alma.

E isso me fez pensar na famosa frase, e talvez velho e bom chavão, de Fernando Pessoa, quando ele diz que se “navegar é preciso, viver não é preciso”.

Outro ponto interessante do filme foi a clareza com que demonstrou a força da pulsão de morte, tal como postulada por Freud (1) e desenvolvida por André Green (3), em sua vertente da destrutividade.

No filme, encontramos figurabilidade para essa triste e grave situação emocional. Um exemplo é a cidade natal de Samuel, cenário íntimo da vida familiar, onde se desenrola boa parte da trama. Ali predomina a frieza da neve e o isolamento do chalé, potencializando a sensação de solidão e o sofrimento daquela família profundamente machucada desde que Daniel foi atropelado e se tornou deficiente visual. Os sentimentos de culpa/culpabilização decorrentes do acidente de Daniel se infiltraram e parece que desorganizaram a frágil estrutura paterna e materna do casal. Enquanto o pai lidou com o excesso de angústia, ficando obcecado em reparar o estrago que o atropelamento causou no filho, abandonando emocionalmente sua mulher e seu desejo de ser escritor, Sandra, a mãe, se negou a apodrecer, nas palavras dela, e buscou sua satisfação sexual e vitalidade, tendo casos e escrevendo seus livros de sucesso.

Eu fiquei pensando que tanto a dedicação obcecada do pai, quanto o não querer apodrecer da mãe, independente de sexo ou gênero, não me pareceram ter funcionado como uma boa forma de cuidar de si mesmo, do filho ou da família. Afinal, todos estavam sofrendo.

Os sentimentos de frustração, inveja, violência, culpa, e os desencontros, além da impossibilidade de escolher e sustentar as próprias escolhas, predominaram no ambiente familiar. E esses sentimentos, ao não encontrarem escuta e sentido, produziram excessos afetivos diante dos quais é preciso criar algum tipo de filtro ou corre-se o risco de passar para a violência. E foi o que testemunhamos. A violência entre o casal evoluiu de muda/fria, para verbal e culminou com a trágica violência física.

Quanto menos encontramos compreensão, maior a chance de regredir para o território das diversas formas de violência. E, no território das violências, as palavras perdem seu poder de comunicar, de criar e de manter vínculos. É onde pululam os atos.

Sob o primado da destrutividade, os sentimentos de desesperança, desconfiança e desconsideração, trabalham desfazendo ligações e desfazendo vínculos afetivos. Prevalece uma força de desligamento e desinvestimento da vida.

Finalizo com as palavras que Marge disse a Daniel: “quando não se sabe tudo, é preciso escolher no que acreditar”. E isso não é tarefa fácil, principalmente nessa Babel atual de desencontros e isolamento que vivemos, inclusive dentro das famílias.

Ao descobrir que nunca teria certeza do que aconteceu, e ao tolerar a dor da incerteza, Daniel, sem poder contar com seu pai ou com sua mãe, buscou, encontrou em Marge e Snoop (que funcionou como um objeto transicional (5)), parceiros amorosos confiáveis que, ao sustentá-lo emocionalmente, facilitaram que ele pudesse imergir em si mesmo para encontrar a sua verdade, conseguindo inclusive se posicionar no tribunal.

Essa é a melhor chance que temos de criar aberturas para encontrar significados vivos, escapando das garras da alienação de respostas prontas. Se dispensarmos o pensar, impedimos que o misterioso e o enigmático circulem e rompam com os sentidos fixos que tornam a vida opaca e desvitalizada.

Referências:

1.Freud, S. (1920). Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Trad. J. Salomão. Imago. (Originalmente publicado em 1920)

2. ——— (1925). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19). Trad. J. Salomão. Imago. (Trabalho original publicado em 1925)

3.Green, A. (2014) ¿Por qué las pulsiones de destrucción o de morte? 1ªed. Amorrortu.

4.Herrmann, F. (2001). O método da psicanálise. In: introdução à teoria dos campos. Casa do Psicólogo, 2001.

5.Winnicott, D.W. (1971). O brincar e a realidade. Imago, 1975.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Cultura

Palavras-chave: Pulsão de morte ou de destruição, vórtice

Imagem: foto de uma cena do filme “Anatomia de uma queda”

Cliquem no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:

https://www.facebook.com/share/p/6kvnpGyP6ws1BHMg/?mibextid=WC7FNe

E sigam nossa página no Instagram @observatorio_psicanalitico 

Categoria: Cultura
Tags: Pulsão de morte ou de destruição | vórtice
Share This