Observatório Psicanalítico – OP 505/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Uma terra, muitas dores

Daniela Boianovsky – SPBsb

O diálogo entre duas lideranças pacifistas de campos opostos, promovido por um conhecido fórum de debates, chama a minha atenção: escuta, curiosidade para saber da dor do outro, admiração e respeito pela luta de cada um. Esses eram alguns dos componentes presentes no tom da conversa e na voz sofrida daquela dupla. Na contra mão das atuais polarizações, era possível visualizar a ponte que ambos erguiam entre si.  O terreno era o da tolerância à coexistência sem o apagamento das diferenças. Ao final, palestino e israelense trocam um aperto de mãos, um forte abraço e partilham um território de entendimento, esperança e compaixão.

Do lado de fora, sob gritos “free palestine, from the river to the sea”, os acordes dissonantes de um mundo em guerra, mais do que nunca, cindido. Entre as metades que reivindicam representar a verdade, o vácuo deixado pela desinformação, pelo preconceito, intolerância e fake News. Tentando sobreviver como meio-campista nesse jogo, vemos uma população acuada e sobressaltada pela intensidade da violência.

Lembro-me de ter presenciado em Israel, meses atrás, grupos de luta em defesa da democracia cujo cenário escolhido para suas manifestações eram as pontes e viadutos, literalmente.  Uma metáfora para o grito que clama por ligação, pelo diálogo entre continentes, a princípio, isolados. Uma reverência ao esforço de integrar. Afinal, destruir é mais fácil: onde há complexidade e angústia, a saída por soluções simplistas, perigosamente superficiais e que calam a realidade alheia, é convidativa. É quando a destrutividade navega em “mar de cruzeiro” …

De volta aos nossos personagens, Aziz Abu Sarah e Maoz Inon: eles nos contam suas histórias, entregam-nos, cada um, sua alma ferida, suas famílias despedaçadas, traumas de uma guerra interminável. Reconheço na minha própria pele os cortes e o sangue que dela escorre para se juntar àquelas dores. Pergunto-me o que temos feito para contribuir com a causa pacifista que defendem, e quando olho para a rua encontro a fúria, o antissemitismo, a islamofobia…feridas que não cicatrizam.

Temos visto, cada vez mais em tempos de redes sociais, a equação que soma o anseio humano por pertencer à satisfação pulsional em odiar – quanto maior o compartilhamento do ódio ao outro, maior a confirmação de pertencimento. No meu grupo habita o herói, no outro, o inimigo. De um lado, o oprimido, do outro, o opressor. O ciclo se fecha. No reinado do binarismo, o hiato que separa, cega e ensurdece, é soberano. E por motivos que não cabem nesse texto, um povo que tem sido frequentemente escolhido para ser depositário desse ódio (des)organizador do psiquismo humano, há séculos, é o povo judeu. 

Dia desses, em uma de minhas caminhadas, reencontro um velho amigo com quem esbarrei tantas vezes naquele roteiro e, juntos, lembramos como aproveitávamos aquele espaço para trocar nossas aflições sobre o quadro político brasileiro, as ameaças vividas pela democracia, etc. Em poucos minutos, nossa conversa se dirige para o conflito no Oriente Médio, e nela escuto as ideias compartilhadas, especialmente, pelo espectro progressista. A definição do sionismo como expressão do colonialismo branco-europeu-norte-americano-expansionista-que-há-75-anos-ocupa-terras-palestinas e impede o estabelecimento daquele Estado aparece como uma certeza e uma obviedade e, além disso – a cereja do bolo -, “o que todo mundo sabe”: os judeus dominam o mundo, são donos de Nova York, são os mais ricos do planeta e os mais perigosos imperialistas. Percebo que Israel, visto deste lugar, é tão somente uma versão do célebre pensamento antissemita da ameaça judaica de poder e domínio, uma reedição requentada das ideias conspiracionistas dos Protocolos dos Sábios de Sião. Roupa nova para um ódio antigo… No decorrer da conversa, meu interlocutor revela, ainda, não saber o nome do rio nem do mar e, portanto, muito menos o que significa o brado que tem mobilizado milhares de manifestantes desde o início dessa guerra.

A curiosidade encontra espaço, uma escuta interessada se abre para ouvir o que normalmente não frequenta as suas redes. Meu amigo se surpreende ao saber que sionismo é a palavra que define o direito do povo judeu à autodeterminação e formação de seu próprio Estado – sim, ser judeu é pertencer a um povo, e não somente a uma religião; que a “entidade sionista” é composta, na sua origem, por judeus refugiados, expulsos, párias discriminados em seus lugares de origem (Rússia, Europa, Oriente Médio) que, desde 1881, passam a se juntar aos judeus que habitavam, ao lado de outros grupos, a Palestina (região geográfica antes conhecida como Judeia, foi assim nomeada pela colonização romana em 132 de nossa era). Que hoje, mais da metade desse contingente judaico descende daqueles que foram expulsos dos países árabes. Que assim como o Estado de Israel, o Estado Palestino poderia ter se constituído em 1948 (recusada pelos países árabes e pelas lideranças palestinas, a partilha proposta pela ONU em 1947 conferiu aos dois povos majoritários da região, judeus e árabes palestinos, o legítimo direito à sua autodeterminação). Lembro ainda, ao meu amigo, que há uma grande diferença entre as datas de 1948, 1967 e tantas outras. Que não, os judeus não são mais ricos do que cristãos, muçulmanos ou hindus (cf. pesquisa citada por David Baddiel, p. 30-1, em “Judeus não Contam”, 2021). Não, o Estado Palestino nunca esteve nos planos de grupos como o Hamas, mas sim a destruição do Estado de Israel e a expansão imperialista do fundamentalismo radical islâmico (conforme estatuto e declarações públicas do Hamas), que não admite, dentre outras coisas, a existência da soberania judaica, qualquer que seja a dimensão do seu território. 

A caminhada chegava ao fim, mas a conversa demandava outras tantas jornadas…

Sim, críticas ao governo israelense são legítimas, necessárias. Boa parte da população de Israel é contrária à condução do Primeiro Ministro que, já reprovado em amplas manifestações nas ruas do país desde antes do massacre terrorista de 07/10, agora tem na guerra um suporte para se manter no poder. Negociações que nos levem ao cessar-fogo, nos tragam de volta os reféns e que ponham fim a uma guerra que já fez milhares de vítimas, são urgentes. Mas não é disso que se trata o movimento pró-palestino quando prega, por exemplo, “morte a Israel!”. O não reconhecimento do direito à autodeterminação do povo judeu, por motivos que lançam mão de preconceitos, distorções e de forte imaginário antissemita é um dos entraves, inclusive, para se estabelecer o próprio Estado Palestino, ao lado de Israel. Mas a militância não parece preocupada com isso. Mais do que não reconhecer a legitimidade da existência de Israel, qualquer que seja a sua fronteira (de 1948 ou 1967), seu lema é pela expulsão – ou até mesmo pelo extermínio da população israelense quando adere a grupos como o Hamas –, uma vez que do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo é o espaço onde se encontram o Estado de Israel e os territórios palestinos. 

Manifestações pacifistas são bem-vindas, mas quando tomadas por gritos de “voltem para a Polônia” ou por barreiras que visam impedir a entrada de estudantes judeus em salas de aula, reforçam a cisão e a desumanização, insistem na falsa figura do judeu/sionista-europeu-colonizador e nos levam de volta para a Alemanha de 1938, nos afastam da perspectiva de um acordo de paz e da própria efetivação do direito do povo palestino a também se autodeterminar e estabelecer o seu Estado. Parte significativa delas tem se caracterizado pela presença da violência, do extremismo – como na exaltação ao 07 de outubro – ou pelo boicote de um povo quando demanda a ruptura de cooperações e intercâmbios acadêmicos ou artísticos. Afinal, qual a responsabilidade de professores universitários ou artistas israelenses pela deflagração da guerra e suas consequências? E por que as ruas se calam, ainda, diante das centenas de milhares de vítimas de outros tantos conflitos em curso no planeta? Vidas iemenitas ou ucranianas não importam? Onde estaria a solidariedade ao Sudão do Sul, com mais de 10 milhões de deslocados? Aos curdos, que beirando os 30 milhões, sofrem perseguições e até hoje não têm respeitado o seu direito à autodeterminação?

O ódio ao judeu, que agora tem nova vestimenta e perde a vergonha, é instrumentalizado com eficiência por aqueles que contam com a desinformação e o antissemitismo para deslegitimar e ameaçar a existência do Estado de Israel.

Estimular o fundamentalismo de um lado é reforçá-lo no lado oposto. O extremismo, esteja onde ele estiver, precisa ser combatido. A ideia de que a terra é de um só povo, é destrutiva para todos. O fanatismo se retroalimenta, congela a rigidez da intolerância e coloca em risco a vida de palestinos e israelenses. Movidos pelo ódio, perdemos a capacidade de pensar, somos reféns da fúria e da vingança. Precisamos de pontes, de caminhos em que posições moderadas de ambos os lados possam se fortalecer e constituir novas lideranças para, conjuntamente, tecer a trilha da coexistência possível e viabilizar, enfim, a solução de dois Estados. Se ninguém vai a lugar nenhum, temos que ser capazes de reconhecer que numa mesma terra habitam dores e sonhos para além daqueles que cada um reconhece como próprios e legítimos. O vizinho também sangra, também sonha. Esse olhar, que identifica a existência do outro e não se vê por ele ameaçado, demanda paciência para ser construído. Mas a alternativa nos leva ao terrível cenário das guerras, à dor que são capazes de causar, como temos visto, a destrutividade e a perversidade humanas. Que pelo menos não morra a esperança de que, para além de suas ruínas, esse conflito possa nos levar, como já vimos acontecer na História, à interdição do ciclo mortífero e, num futuro próximo, a uma solução de compromisso entre israelenses e palestinos.

Iniciei este texto trazendo Aziz e Maoz como representantes de campos opostos do conflito israelo-palestino. É preciso fazer uma correção: eles estão juntos, há mais tempo do que podemos imaginar. Lá atrás, tinham o mesmo adversário quando lutavam contra a opressão e o colonialismo europeu. Hoje, quando lutam pela coexistência, pela tolerância, pela paz, pela soberania e liberdade de seus povos. Juntemo-nos a eles.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Israel, Palestina, sionismo, antissemitismo, guerra, paz.

Imagem: foto de “Alttitudes”, Orit Kalev, artista plástica israelense https://www.instagram.com/p/CV–7qkIr9-/?igsh=MWM5MXY4NXJycmRoaA==

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Tags: Antissemitismo | guerra | Israel | Palestina | Paz | sionismo
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