Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Projeto de Ação Emergencial SBPdePA Enchente maio/2024
Patrícia Rivoire Menelli Goldfeld – SBPdePA
Como amplamente divulgado, desde o final de abril de 2024, um grande volume de chuvas atingiu fortemente a quase totalidade do território do RS, afetando mais de 90% das cidades gaúchas (469 dos 497 municípios até 25 de maio, segundo a Defesa Civil do RS, com 166 pessoas mortas, 61 desaparecidas, 806 feridas e mais de 650 mil fora de suas casas, estando 55 mil em abrigos). Mais de 2,3 milhões de moradores foram afetados pelo pior desastre climático da história do RS. Foram resgatados 12.497 animais, tornando-se o cavalo Caramelo, que resistiu sobre um telhado cercado de água por quatro dias, um símbolo da resistência e luta pela sobrevivência.
As chuvas intensas provocaram uma série de fenômenos, tais como: enchentes, inundações, alagamentos, deslizamentos de morros e encostas e até mesmo tremores de terra na cidade de Caxias, na serra gaúcha. A catástrofe climática, que assolou inicialmente as cidades do Vale do Rio Taquari, trouxe a fúria das águas de outros rios também, chegando ao lago Guaíba, inundando Canoas, Porto Alegre, Eldorado do Sul, Guaíba, São Leopoldo e outras cidades, deixando em sua passagem um cenário devastador. O vento Sul, represando a saída da água da Lagoa dos Patos para o Oceano Atlântico, traz mais apreensão quanto à diminuição ou não dos níveis da água. Passamos a torcer por cada centímetro a menos do nível do Guaíba.
Estamos presenciando a maior enchente da história do Rio Grande do Sul. Juntamente com a dor, o imenso sofrimento pelas perdas materiais e simbólicas e os lutos em andamento, já se movimenta na sociedade gaúcha uma indignação pela falta de manutenção e investimentos nas estruturas de contenção das águas em Porto Alegre e responsabilizações começam a ser apuradas. O negacionismo climático também não percebe nossa dependência total ao ambiente onde vivemos e nossa interdependência uns com os outros. Desastres dessa natureza expõe nossa fragilidade social, as desigualdades e o racismo ambiental.
Com o objetivo de auxiliar as pessoas atingidas e os profissionais que atuam e atuaram no resgate das vítimas e no cuidado e atendimento das mesmas, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA), desde o início dos trágicos acontecimentos, profundamente sensibilizada e reconhecendo sua responsabilidade junto à comunidade gaúcha, desenvolveu um Projeto de Ação Emergencial para o atendimento gratuito para as vítimas dessa catástrofe, bem como aos profissionais e voluntários civis que cuidam das vítimas. O Projeto é constituído por duas linhas de ação: o atendimento on-line e o atendimento presencial em abrigos de resgatados e desalojados de suas moradias.
A ideia foi baseada em duas experiências semelhantes vivenciadas na Pandemia de Covid19, em 2020 e 2021, e na enchente de 2023, quando a SBPdePA também realizou atendimentos gratuitos on-line. As experiências anteriores foram de fundamental importância pois revelaram uma enorme demanda pela escuta analítica, quando acessível às pessoas de baixa renda, e o enorme potencial das instituições psicanalíticas para o trabalho junto à comunidade. Um grande número de colegas psicanalistas participou e referiu ter sido uma experiência muito enriquecedora, tanto para a pessoa atendida quanto para o/a psicanalista.
O Projeto atual expandiu-se em relação aos anteriores, passando a contar com psicanalistas e psicólogos de vários estados do país, que ao tomar conhecimento da Ação Emergencial, procuraram a SBPdePA para somar-se aos colegas já engajados. Atualmente, temos cerca de 180 profissionais atuando no atendimento on-line e mais de 100 pessoas já estão se beneficiando deste serviço. O atendimento presencial em abrigos de Porto Alegre conta com 42 colegas e vem ocorrendo desde a instalação dos primeiros abrigos. A colega Vera Hartmann centraliza os encaminhamentos, pelo contato de celular (51) 991135950, sendo que todas as procuras receberam atendimento. São realizadas reuniões regulares com os profissionais dos dois grupos, visando proporcionar uma escuta da escuta.
Com o passar dos dias e o aprofundamento da crise provocada pela enchente, a demanda cresceu e solicitamos apoio do PACE/IPA. O PACE – Assistência Psicanalítica em Crises e Emergências – é um Comitê da IPA, criado em 2021 na gestão de Virginia Ungar, que oferece Grupos de Discussão de Trabalho para profissionais que atendem populações afetadas por catástrofes e guerras. Também contamos com o apoio do SOS Brasil da Febrapsi que, prontamente, apresentou-se para integrar com seus cinco eixos de atuação (bebês, crianças, adolescentes, adultos envolvidos, instituições, dando supervisão em grupos/ateliê). Acreditamos que passado o período de sobrevivência e retomada, teremos uma procura maior para atendimentos. Somos muito gratos a todos colegas que imediatamente colocaram-se à disposição para somar forças nesse esforço terapêutico emergencial.
Método de funcionamento do Projeto Ação Emergencial:
Em se tratando de um atendimento que foge da nossa prática habitual de consultório, requer que pensemos na especificidade da escuta analítica frente a uma crise de tamanha magnitude. Dar continência à dor da pessoa que sofreu o trauma recente, receber suas palavras e sentimentos, colocar em movimento o processar subjetivo do traumatismo, vai ajudando a retomar uma organização psíquica possível para aquele momento ou mais próxima da organização anterior à tragédia.
Esse tipo de intervenção pode ser de imensa ajuda para que siga adiante e retome sua vida. A pessoa que sofreu o traumatismo pode sentir-se mais segura para enfrentar o que virá pela frente, como a reconstrução de sua vida e o processamento das perdas de entes queridos ou bens. Assim, ela tem nosso testemunho e também reflete sobre os acontecimentos e se conecta com os seus sentimentos. Até aqui é semelhante ao nosso trabalho habitual. No entanto, não buscamos acessar os traumas do passado e não interpretamos a transferência. Poderíamos pensar numa transferência sobre um enquadre dado pelo fato de a escuta analítica emergir de um enquadre interno no analista?
Chamamos esse trabalho de atendimento de crise, que é breve, em geral com 4 sessões, podendo ser estendido para 8. O indivíduo pode inclusive fazer uma sessão e sentir-se ajudado. O objetivo não é a criação de vínculo ou levar o assistido a realizar tratamento psicanalítico. Caso a pessoa sinta que deve seguir com outros profissionais da saúde, ou com medicamentos, depois do nosso auxílio, poderá ser encaminhada. Por vezes, o colega segue com o assistido fazendo um outro contrato de tratamento, já fora do Projeto de Ação Emergencial.
Fazemos também reuniões on-line com os colegas que estão prestando os atendimentos para a troca de experiências e vivências. Nesses encontros são discutidos casos e seus encaminhamentos se necessário. Aqui temos uma semelhança com o método Esther Bick da Observação da Relação Mãe Bebê, onde depois da observação realizada pelo observador individual, é fundamental o trabalho em grupo para o processamento do que foi observado.
Para aqueles que resgatam pessoas das águas, o atendimento seria importante pelo potencial traumático do contato excessivo com pessoas em situação muito vulnerável e traumatizadas e pela vivência de perder tudo ou ameaça de morrer. O atendimento online, herança da pandemia, pode ajudar muitos e também é necessário que tenham o apoio de grupos, horas de descanso e restringir a exposição constante ao sofrimento do semelhante. Entre os problemas encontrados nos atendimentos, temos crises de ansiedade, pânico e depressão.
Esses acontecimentos, que surgem de forma abrupta e violenta na vida das pessoas, muitas vezes, não podem ser processados dada a intensidade traumática. Na hora de sua ocorrência, a primeira preocupação é salvar a própria vida e das pessoas queridas. Quando as vítimas chegam aos abrigos, começam a processar tudo o que aconteceu, estão longe de casa, do seu espaço e lar, perdem a privacidade e a dignidade de ter um lugar seu para morar e viver. Em Porto Alegre, ocorreu que facções criminosas rivais que se encontraram dentro do mesmo abrigo entraram em conflito. Assim como temos parte da população exposta a essas violências no seu cotidiano, temos também pessoas que não viviam nesses locais de violência endêmica e começam a presenciá-la, temendo mais uma vez por suas vidas. Então, as pessoas são afetadas de várias formas.
Têm-se nos abrigos um microcosmo das crônicas mazelas brasileiras de violência do tráfico de drogas, do abuso sexual e estupro.
Temos programado, até o momento, três encontros com colegas do PACE. Já tivemos o primeiro com Mônica Cardenal (APdeBA) e Silvia de Egea (APdeA), sendo os próximos com Gianna Williams (SPB e Clínica Tavistock) e com Ricardo Readi (SPB).
Em nome da Diretoria e de todos os membros da SBPdePA, venho agradecer as inúmeras manifestações de apoio e solidariedade advindas de sociedades e colegas do Brasil e da América Latina. A capacidade solidária dos brasileiros é uma de nossas belezas.
Na expectativa de que possamos aprender algo com a experiência de tamanho sofrimento, dor e perdas, que possamos enquanto país escutar também o que a natureza nos diz sobre a maneira como estamos nos relacionando com ela, que nossos representantes políticos sejam mais sensíveis ao ambiente e ao sofrimento das pessoas do que às pressões do mercado imobiliário e do agronegócio, que as águas se acalmem e que a chuva não fique com a marca da angústia climática.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: Enchente, trauma, acontecimento, psicanálise, ação emergencial.
Imagem: Pessoas caminhando por uma rua alagada no bairro Navegantes em Porto Alegre. Foto: Carlos Fabal AFP https://images.app.goo.gl/
Todos os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. O acesso se dá pelo link: https://febrapsi.org/
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