Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Enchentes e a revelação da Zona de Desinteresse
Ellen Bornholdt Epifanio – SPPA
O nosso jardim foi por água abaixo quando mais de 90% do território gaúcho foi atingido pelas enchentes, e revelou então, a vasta área de calamidade já existente entre nós.
Essa tragédia me fez recordar um filme, aparentemente sobre outra temática, mas que no fundo, interconecto com o que nos acontece: o longa-metragem britânico, vencedor do Oscar de melhor filme internacional, Zona de Interesse, dirigido por Jonathan Glazer. Este se passa durante a Segunda Guerra Mundial quando Rudolf Höss (Christian Friedel), o comandante de Auschwitz, e sua esposa Hedwig (Sandra Hüller), desfrutam do ar calmo de uma vida aparentemente comum e bucólica, em uma casa com jardim. Mas, por trás da fachada de tranquilidade, além do muro da própria casa, está o campo de concentração de Auschwitz. O dia a dia dos personagens se desenrola quase alegremente entre os gritos abafados de desespero ao lado, de um genocídio em curso, do qual, o protagonista também é diretamente responsável.
Essa história, em uma primeira camada, aborda o horror do nazismo, mas em outro estrato, do meu ponto de vista, se endereça a tantos jardins separados pelo muro da negação da nossa realidade factual e intrapsíquica.
As enchentes de maio de 2024 revelam o que sempre esteve ao nosso lado, por detrás do muro da Mauá: o estado falido por décadas consecutivas, a miséria de grande parte da população, as medidas inexistentes de proteção para catástrofes, o aquecimento global e suas consequências, o grito de cientistas silenciados, falta de investimento no que não está visível (como o sistema hidráulico) …
Vivemos em uma fina camada de negação que se esfacela com o que emerge das águas transbordantes. Assim como no filme, a fumaça das câmaras de gás surgia enquanto crianças brincavam no jardim, nós também podemos viver a nossa vida tranquilamente enquanto o horror está ao lado. Grande parte de nós nega dita realidade e então fomos arrebatados como se tomássemos uma paulada na nuca pela enxurrada. Nossos nervos estão desencapados como os fios de alta tensão soltos nas calçadas de Porto Alegre.
Testemunhamos cena de guerra. Helicópteros. Abrigos com milhares de pessoas. Abrigos para alguns já desabrigados. Abusos dentro dos abrigos. Voluntários levando comida. Socorristas. Mães entregando seus bebês aos barcos. Cachorros nadando rumo à botes salva-vidas. Ataques aos socorristas. Cavalo em cima do telhado. Casas, pontes, estradas, carros, e até o nosso aeroporto abaixo da água. Falta de luz. Falta de água. Mortes. Doenças. Esses são os resíduos tóxicos que os “diques da negação” romperam. Tudo isso nos coloca frente ao efeito dominó que virá: miséria, doenças, violência, desemprego, problemas psicológicos de toda ordem, e, pior, as novas chuvas. Aprenderemos algo com isso? Ainda tenho esperança que sim, se não seguirmos envoltos em uma camada de negação, se preferirmos, acima de tudo, a verdade.
O que observo e tendo a acreditar é que a solidariedade ainda prevalece sobre a perversão e indiferença. A verdade acima das fake News. Tenho esperança em todos os Caramelos que resistem acima de suas casas, dos barcos que salvam, e dos voluntários que trabalham incansavelmente sem posar para a foto. Das inúmeras doações. Dos projetos de reconstrução.
Evoco Bion que descreve que é preciso um ato de fé para funcionar um tratamento. Tenho fé que possamos aprender algo com o horror. Já que estamos metidos na coisa até o pescoço: como tornar proveitoso um mau negócio? Quem sabe o que transbordou derrube a nossa propensão à negação e a irrefreável ausência de limites?
A cegueira ambiental é como um muro enferrujado que cai com a força da água. E se um dia eu tiver netos, sonho que encontrem nos livros de história o que tiramos de lição com tudo isso.
Seria possível?
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: enchentes, negação, verdade, esperança
Imagem: Fabrício Simões
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