Observatório Psicanalítico – OP 502/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Vocabulário encharcado

Juliana Lang Lima -SBPdePA

Quando a maternidade ingressou em minha vida, fiquei um tanto surpresa com a quantidade de novos significantes que passaram de desconhecidos a habituais. Já na gestação, a vida passou a ser dividida em semanas, e então tudo que se referia a parto, amamentação, cuidados com recém-nascido e introdução alimentar integrava meu cotidiano como se sempre tivesse feito parte dele. A maternidade inaugurou muitas coisas, inclusive um dialeto. 

Nunca pensei que, não sendo médica, me tornaria praticamente especialista em diferenciar infecção por vírus ou bactéria,; sendo saudável, viraria quase sócia da farmácia. Embora até estivesse um pouco preparada para virar conhecedora de todo repertório do Mundo Bita, fã da Peppa Pig e da Patrulha Canina, jamais imaginei que seria tão difícil lidar com privação de sono. Nesse ponto, já achava que meu mundo tinha se ampliado bastante, até que dois anos depois uma pandemia se instalou em nossas vidas, trazendo outros alargamentos para meu léxico particular. 

Nessa nova fase, descobri o que significava perdigoto, passei a diferenciar as variantes de uma tal SARS-CoV-2, fiquei obcecada pelas diversas vacinas e por seus modos de funcionamento no organismo, me tornei íntima de conceitos como semana epidemiológica ou média móvel. Isso tudo para falar do terreno da linguagem, pois não posso deixar de fora a máscara, o confinamento e o medo, que não costumam fazer parte de meu dia-a-dia e rapidamente criaram morada.

Não sei se é porque essas experiências já estão em um passado que, embora recente, apaga um bocado da intensidade do que se foi, mas tenho a sensação de que nenhuma dessas vivências se compara ao que sinto desde 02 de maio de 2024, quando recebi o telefonema desesperado da pessoa que trabalha em minha casa, me ajudando a cuidar de meus filhos. 

Perdi tudo, ela disse. Tudo. E eu, desde então, mobilizada, culpada, entristecida, ensimesmada, me reviro e penso em como ajudar, a ela, sua família, a tantos outros. Na escassez de recursos que assola meu estado e a cidade que há 24 anos escolhi para viver, restaram algumas palavras encharcadas…

Excesso de água. 

Muro da Mauá. Nível do Guaíba. Sistema de bombeamento. Dique. 

Resgate. Abrigo. Pessoas. Animais. Vidas. Voluntários. 

Desalojados. Desabrigados. Bloqueios. Sujeira. Fedor. 

Leptospirose. Tétano. Hepatite. Diarreia. Insônia. Medo. Depressão. Raiva. 

Dmae. Ebab. Ebap. Eta. EITA.

Falta de planejamento. Falta de manutenção. Pessoas não deveriam morar nesses lugares. Frio. Raiva. 

(Mas não é hora de politizar a tragédia, eles dizem)

Sarandi, Humaitá, São Geraldo, 4⁰ distrito, Praia de Belas, Menino Deus, Cidade Baixa, Centro Histórico. 

Falta de água. Mas como, se ela não escoa, insistindo em permanecer ali por quase 30 dias?

Corredor humanitário. Doações. Solidariedade. Fake news. Raiva.

Falta de luz. O estado todo está no maior escuro de sua história. 

Galocha. Lava-jato. Rodo. Lama. Ratos. Peixes. Baratas. Esgoto. Peste.

Falta de gás. E como faz pra ter energia em vez de raiva? 

(Não é o momento de procurar culpados, eles reiteram)

Lajeado. Estrela. Muçum. Roca Sales. São Leopoldo. Eldorado do Sul. Alvorada. Canoas… que afundam em vez de fazerem passeios.

De tempos em tempos, aparece algo que nos faz incluir tanta coisa em nosso vocabulário corriqueiro. E eu que achava que a maternidade e a pandemia já tinham cumprido esse papel…

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: pandemia, enchentes, emergências climáticas, tragédias, políticas públicas.

Imagem: Foto dos arredores da Rodoviária, entrada da cidade de Porto Alegre, de Márcio Garcia @mgarcia_fotografia

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Tags: emergências climáticas | enchentes | pandemia | políticas públicas | tragédias
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