Observatório Psicanalítico – OP 501/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Terra devastada, Mães devastadas, Agônicas raízes.

Silvana Rodrigues de Barros – SPFOR – e Álvaro Madeiro Leite – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará – Humanidades Médicas

“Agora este vazio da foto vai ser eterno, agora a saudade e a lembrança vão fazer morada. Agora eu não tenho uma palavra que possa descrever a minha dor, porque como vou viver faltando uma peça no meu quebra-cabeça?”

(Gabrielli da Silva, em texto após a morte da filha Agnes.)

Doze de maio, dia das mães, dia que Agnes da Silva Vicente, bebê de sete meses, é encontrada morta em Canoas (RS). Ela estava desaparecida desde o dia 4 de maio, quando o barco em que estava com a família virou durante o resgate no município, atingido pelas enchentes no Rio Grande do Sul. 

Enterraremos Agnes, sentindo a dor dessa mãe, mas o que faremos com esse vazio que ficará na mente dela, do povo do Rio Grande do Sul e do Brasil?

“Abril é o mais cruel dos meses, germina

Lilases da terra morta, mistura

Memória e desejo, aviva

Agônicas raízes com a chuva da primavera.”

No poema A Terra devastada-, T. S. Eliot descreve um mundo pós  Primeira Guerra Mundial e nos atordoa com a ideia de uma terra desolada e estéril, refletindo um mundo que perdeu sua vitalidade e significado. 

Eliot lamenta a turbulência das águas que deixa a terra em ruína, numa reflexão profunda sobre a condição humana e a busca por redenção em meio ao caos e à desolação. 

O futuro nada promete de bom. O correr das águas sem margens inunda a terra e anuncia morte e desamparo. Estamos com medo, na margem da vida que atropela esperanças e alegrias. “Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”.   

Quais humanos estão dispostos a olhar e testemunhar a desolação dessas mães do Rio Grande do Sul? Quais humanos possuem ou estão dispostos a procurar atributos possíveis para se aproximar e enfrentar essa devastação?

“Agora eu não tenho uma palavra que possa descrever a minha dor…”   O encontro com o indizível da dor dessas mães do Rio Grande nos angustia, desorganiza nossa capacidade de pensar. A percepção de algo que é intuído como um inescapável buraco negro presente no horizonte de cada um de nós pode nos levar a processos de silenciamento das mães e das cidades destruídas.

Que tipo de escuta poderá ajudá-las a narrar o inverossímil, expondo as fraturas da representação frente ao horror e à catástrofe?  

“É necessário, todavia, que na linguagem haja lugar para o testemunho ‘de algo de que não se pode testemunhar’”, apenas assim, o falante poderá experimentar algo semelhante a uma exigência de falar, diz-nos Agamben (2008).

As mães do Rio Grande buscam palavras, acolhimento e continência. Torna-se imperiosa a necessidade de falar da experiência traumática de perder a casa, o filho, e do desnorteamento de deixar tudo para trás. O traumático, se não for acolhido e legitimado, pode produzir um sujeito desamparado, invisível ao outro.

Mas se estamos todos sensibilizados, interessados em ajudar, olhando intensamente as notícias dos desabrigados, por que questionar a disposição dos humanos para encontros radicais em meio a ruínas de devastação? Quem de nós está em condições de enfrentar a realidade de frente e se aproximar da feiúra das águas barrentas, abrigando em si o desolamento dessa gente?

José Saramago, o escritor português, Nobel de literatura em 1998, em seu Ensaio sobre a Cegueira, já havia nos alertado desde a epígrafe para a responsabilidade dos que tem olhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Aqui se acrescenta a situação limite do que fazer diante de homens e mulheres/mães quando os mesmos sabem que vão morrer ou repetir a morte tantas outras vezes.

Esse fenômeno já foi exaustivamente analisado nos mais diversos cenários de catástrofes ambientais e humanas, em especial, na Segunda Grande Guerra. O horror agora chegou ao Rio Grande do Sul, e aqui apontamos o que não pode ser negado, o que precisa se abrigar em nós para não agirmos como profetizou o personagem de Lampedusa em O Leopardo, “tudo deve mudar para que tudo permaneça como é”, quando passada a turbulência das águas.

O canto da multidão no retorno à casa do viúvo Sorôco do conto de Guimarães Rosa pode muito bem embalar nossas noites de tormento: “A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga”. 

Se pudermos escutar, o que nos dirão as mães do RS e a mãe natureza sobre as deformidades das ações humanas ? E sobre a beleza dos atos de solidariedade e de cuidado ? Seremos capazes de um pensamento responsável que prevê, antecipa e protege contra os perigos da vida ? 

A função materna, protagonista na constituição e manutenção da vida, decorre do estabelecimento de um laço pulsional entre a mãe e seu bebê. Essa operação necessita que o agente materno esteja em uma posição de reconhecer as necessidades e desejos de seu filho/a e de respeitar seus direitos e deveres. 

Alicia Lisondo nos diz que a função do outro materno é transformar elementos sensoriais das experiências do bebê, ser um modelo continente, pensante, inspirar desenvolvimento e mudanças. 

Atribuindo a capacidade de proteger e transformar à função materna, que possamos escutar o testemunho das mães, na esperança de fazer nascer um novo tempo de cuidado. 

Ainda que tristes e perplexos, jamais abandonaremos a esperança de que a terra alagada e desolada se transforme em campo de brilho primaveril, com semente e flor como promessa de vida.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Terra devastada, função materna, testemunho, continência, transformação.

Imagem: Folha de São Paulo. Reportagem: Sinimbu se recupera da tragédia. 03.maio.2024

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Tags: continência | função materna | Terra devastada | testemunho | Transformação
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