Observatório Psicanalítico OP 500/2024


Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

OP 500: a escrita como acontecimento*

Ana Valeska Maia (SPFOR), Beth Mori (SPBsb), Gabriela Seben (SBPdePA), Giuliana Chiapin (SBPdePA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), Lina Schlachter (SPFOR)e Vanessa Corrêa (SBPSP)

Há palavras que representam fortemente o que pretendem designar. É o caso da palavra acontecimento.

É próprio do acontecimento nos tomar de assalto. Um susto diante do inesperado, um atropelo da rotina seguido por gestos primevos, como mãos que tapam bocas abertas e arregalam olhos.

Um acontecimento, dependendo de sua intensidade, pode até momentaneamente nos roubar as palavras e fazer virar a cara para não ser visto. Mas existe, se impõe, não passa despercebido. Ele adentra nossos consultórios, nos coloca no lugar de quem sente seus efeitos. Demanda uma escuta sensível sobre suas reverberações, em nós e nos outros.

Ainda ontem saímos de uma pandemia. Foi um acontecimento que gerou uma categoria de escrita no OP, chamada “Tempos Pandêmicos”. Hoje guerras estão em curso no mundo. Eventos climáticos invadem a vida comum com inundações, secas, incêndios, atingindo primeiro os mais vulneráveis. Histórias de um passado colonial se derramam nas paredes do hoje, percorrem a fibra das cidades e emergem em atos racistas, em intolerâncias perante a diferença e em ataques à democracia. 

Vivenciamos uma contemporaneidade instável. Nesse sentido, olhar em retrospecto para a celeridade dos acontecimentos e mutações é fazer cintilar um desafio: cada vez mais será preciso aprender a criar em territórios de ruínas.

A escrita é uma tentativa de dar corpo ao que foi esfacelado. Rosa Montero diz que “quando a dor cai sobre você sem paliativos, a primeira coisa que ela lhe arranca é a palavra”. Portanto, retomar a palavra nos devolve a um lugar potencial.

Quando nos dispomos a falar sobre aquilo que nos oprime, ou oprime o outro, quando a vida lança-nos em zona movediça, ensaiamos uma caminhada para o futuro, por mais que os prognósticos não sejam animadores. Esse amanhã desconhecido nos olha e pergunta: o que vocês farão diante do que está acontecendo?

A escrita como acontecimento é uma coleta de restos, de rastros, de ressonâncias, de reverberações do que foi significativo emocionalmente.
Começamos o trabalho de escrita e publicação de ensaios no OP há 7 anos, em 2017. Um movimento que brotou da necessidade de trocas de experiências com colegas psicanalistas que compreendem a impossibilidade de passarmos incólumes perante o que nos afeta. Nas linhas das falas e das escutas, nos hiatos dos silêncios, na escrita e na leitura, construímos uma rede imbricada e uma parte da história da psicanálise brasileira.

Em 2023, o trabalho do OP foi reconhecido internacionalmente e, conquistando a premiação da IPA na comunidade e no mundo, na categoria Cultura.

Hoje chegamos ao ensaio número quinhentos. Como um observatório astronômico que se abre para o universo através dos céus, o OP tem sido um espaço de abertura do nosso olhar para outros universos, ora com grandes angulares, ora com lentes microscópicas. Uma multiplicidade de vozes e olhares que se voltam para o mundo e aqui se expressam, como numa sinfonia de acordes dissonantes, em que o resultado é inesperado e, ao mesmo tempo, vai-se compondo como obra única de autoria coletiva.

Um “folhear de páginas” por estes ensaios nos permite perceber o caráter autoral que brota de cada um deles. A escrita nasce da experiência e, pelo menos neste espaço, não poderia ser diferente. Nossos autores são psicanalistas que habitam e coexistem em seus mundos, cidades, comunidades e que, afetados pelo acontecimento, põem a mão na massa e escrevem, em busca de sentido, de testemunho, de elaboração. Somos parte de nossos acontecimentos e não meros observadores assépticos de nossa civilização. O acontecimento encarnado, vivido, experienciado, faz nascer uma escrita ensaística que, pela rapidez a agilidade do timing, não deixa espaço para floreios e citações excessivas, que muitas vezes podem encobrir a voz do autor.

Quinhentos ensaios reunidos formam um corpo histórico e dinâmico. Em nosso trabalho de curadoria buscamos estar em consonância com sua raiz etimológica que significa “cuidar de”. Além da revisão dos textos e encaminhamento de sugestões de edição aos autores, pensamos as publicações em termos de paralelismo, de relações de vizinhança que instiguem associações, inspiradas pelo método dos curadores de exposições de arte.

Aqui, nos bastidores, temos reuniões semanais e conversas diárias, e nosso trabalho é formado por uma série de composições e tomadas de decisões: quando aproximar textos para que estes dialoguem; como cuidar de um acervo em movimento, já que uma vez publicados, frente ao impacto dos acontecimentos, os ensaios retornam em nosso #tbt no Instagram; acompanhamos os acontecimentos diários e convidamos colegas para a escrita, tanto de quem já contribuiu quanto para escritas inaugurais; mensalmente lançamos o editorial Sódepois, desde maio de 2020, com o entrelaçamento dos temas desenvolvidos pelos autores a partir de uma ótica conceitual do corpo curatorial e escrevemos mensalmente, desde março de 2022, o roteiro para os episódios do podcast Mirante, que já se encontra na 4ª temporada: O sexual na Polis. Ao todo são 32 programas, presentes nos tocadores de áudio, em que colocamos a psicanálise para dialogar com outros campos do conhecimento.

Com a abertura do OP aos colegas de federadas de fora do Brasil ampliamos o alcance e a participação através da escrita dos ensaios. No OP-335, a psicanalista Lúcia Passarinho (SPBsb) propôs: “O OP talvez seja o único lugar de que dispomos, enquanto psicanalistas filiados à FEBRAPSI (e agora FEPAL e IPA) para expressar o pensamento político, no sentido filosófico do termo, para a troca respeitosa e estimulante de ideias. Precisamos cuidar para que se mantenha assim.”

Cuidar do OP é nutrir um espaço fértil em trocas, de estímulo ao pensamento sociopolítico, cultural, institucional. Diante de mundos em mutação, a escrita é um acontecimento que nos vincula. Já tivemos 500 bons motivos para isso. Aguardamos receber e cuidar dos próximos 500 ensaios, quiçá 1000, 2000…

*(Na epígrafe do livro “O acontecimento”, Annie Ernaux antecipa a função de sua escrita: “Que o acontecimento se torne escrita. E que a escrita seja acontecimento.”)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade; Instituições Psicanalíticas; Cultura

Palavras-chave:  acontecimento, escrita, Observatório Psicanalítico, 500 ensaios, história da psicanálise.

Imagem: Intro_missão, (ação). Ana Cristina Mendes, 2008. Ação realizada pela artista – escrita a carvão em uma parede, durante a exposição Intro_missão, em parceira com o poema “Caramujo”, de Orides Fontela.

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Tags: 500 ensaios | acontecimento | Escrita | História da psicanálise | observatorio psicanalitico
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