Observatório Psicanalítico – OP 499/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Catástrofe, catarse e tentativa de transformação em acontecimento psíquico

Aline Wageck, Candice Campos, Caroline Buzzatti, Fernanda Crestana, Julia Frozi, Julia Goi, Luciana Sokoloski, Mariana Torres, Marina Gastaud, Martina Schilling, Nyvia Sousa, Paula Saffer, Stefania Teche – SPPA

“- Oi, vocês estão bem? A água chegou até ti?

– Onde posso ajudar?

– Já passei em três abrigos para doar o que separei!

– Estão precisando de ajuda na retirada dos resgatados, eles saem em pânico!

– Estamos fazendo comida para os desabrigados!

– Maria perdeu tudo.

– José também.

– É um estado de guerra.

 – Água, água, água, nos mandem água potável!”

Nossas mentes estão permeadas desses diálogos. Este texto é uma catarse coletiva de um grupo de analistas e amigas que compartilharam as angústias diante das enchentes que destruíram o RS e inundaram a nossa capacidade de continência nos últimos dias.

Choveu canivetes que machucaram muita gente; transbordaram as emoções; romperam os diques civilizatórios; vibramos com uma enxurrada de solidariedade para contrabalancear a enchente de ganância e malícia; estamos afogados no desamparo, no desespero e na impotência; ansiamos por enchente de esperança, sol e vida cotidiana. Alguém nos resgata da nossa angústia, abriga a nossa dor, nos doa nutrientes psíquicos? Alguém nos aquece nesse inverno mental que nos alagou em pleno veranico de maio? Quanto tempo levará para cicatrizar a aflição? Quem nos salva dessa inundação?

Precisamos garantir a sobrevivência da alma dos que sobreviveram de corpo.
De um lado, pensamentos catastróficos, “o Rio Grande do Sul vai sair do mapa”; de outro, admiração com a força do nosso povo. O pior e o melhor do ser humano aparecem nessas horas. Criminosos tentaram assaltar um barco e depois pediram para os mesmos policiais que os prenderam que resgatassem os seus familiares. Chove, o céu escurece, o barulho constante dos helicópteros lembra zona de guerra, só piora a sensação de apreensão do que ainda possa acontecer. Mas no dia seguinte faz sol e o barulho dos helicópteros já pode ser associado a resgate, a esperança de mais sobreviventes.

Os vídeos de bebês e cachorros em
situação de extremo perigo denunciam a vulnerabilidade e o desamparo no seu tom máximo. A corrente dos voluntários para tirar os botes das águas é o que também nos salva desse afogamento psíquico. Entre uma lágrima e uma gota de suor, a gente escreve. Alivia um pouco ver chegar no abrigo crianças jogando futebol, alegres. Dentro, tudo organizado com o maior carinho e capricho pelos voluntários. Brinquedoteca cheia de crianças com livrinhos e brinquedos. Pais e voluntários brincando com elas.

Trabalhando em um dos tantos abrigos de Porto Alegre, nessa realidade que as palavras não alcançam descrever, uma mãe angustiada estava sendo atendida pela psiquiatra quando o menino aparece e mostra o boneco:

– Quem é esse? – pergunta a psiquiatra.
– É o Aquaman.
– ⁠⁠Que legal! O que ele faz?
– Ele controla os tubarões!
– Os tubarões? Então ele é poderoso!
– ⁠Sim, poderoso!
– E será que ele controla as águas também?
– ⁠Sim!
– ⁠O que tu achas de a gente pedir para ele tirar todas essas águas que estão por aqui na cidade? Deixar tudo sequinho, como era antes?
– ⁠Boa ideia!
– ⁠Ih, ele disse que tem que ter paciência, vai demorar uns dias, porque é muita água, mas ele vai conseguir!

Transcende o possível, precisamos ajudá-los a elaborar o indescritível, nos recusamos a jogar a toalha. Será que conseguimos suportar mais vídeos de bebês e relatos de crianças sofrendo? Choro de desespero, choro de dor. A casa da gente é um lugar sagrado.

Nesse momento, conseguimos seguir ouvindo música, lendo? Não é a arte que cura agora, mas a solidariedade. Empresários de todo Brasil estão abastecendo os helicópteros e cedendo barcos para o resgate. Brasil é isso, rico e desorganizado! A esperança vem do povo, do cidadão civil fazendo a sua parte, se organizando. Os jovens, que na pandemia padeceram com o isolamento, agora se juntaram, estão ativos e cooperando. Em um gesto espontâneo, genuíno e necessário experimentaram a grandeza da vivência e aprendizado do voluntariado.

Naquela terça que a chuva começou, já se percebia a intensidade da água que caia, o excesso. Quanta água! Depois os dias foram passando e a tradução de tudo que estamos vivendo foi inundada por um mar de notícias, morte, destruição… O humano solidário, a união. Mas também tem as notícias falsas, os assaltos, a maldade.

“Vocês viram ontem o resgate de um menino autista por um dos surfistas? Ele conseguiu se aproximar do menino de uma forma alegre, empática, criativa, e transformou o resgate em um momento de diversão para o menino… Surpreendentemente aceitou ir sozinho e batendo palmas para o colo do surfista que contava histórias sobre as águas e perguntava se ele queria aumentar a velocidade do jet ski. O menino abanava os braços sem medo, excitado pela emoção. Que empatia e sensibilidade, que resgate emocionante!”. Lágrimas que nos inundam de esperança, um alento na alma. Há esperança no ser humano, no amor, na pulsão de vida.

Será que a velocidade com que as transformações ocorrem é a mesma da adaptação? Em uma hora estamos num fofo sofá que nos abraça olhando imagens lindas na TV, em outra num bote duro e gelado assistindo um cenário inacreditável da força da natureza. Em ambos, felizes, por estarmos vivos! O corpo sente, nem dorme ou acorda como uma pedra. A perda machuca e não descansa. O movimento do outro nos faz esquentar. Os sonhos – alguém precisa lembrar de que voltarão. Cada amanhecer traz a esperança da água voltar ao seu rumo e nos encantar com sua beleza. Que sua força nos mobilize a novas transformações e nos ensine a aumentar o fôlego na nossa reconstrução!

Navegar é preciso, viver não é preciso. PÉ impressionante como mudam as necessidades nessas horas. Mesmo que aparentemente nossos pacientes estejam falando de outras coisas, eles trazem experiências traumáticas ditas ou veladas de vulnerabilidade, medo, impotência. Faz muita diferença serem ouvidos em qualquer queixa. E isso vai longe, nem nos recuperamos da pandemia ainda…

É um paradoxo absoluto: por esse excesso de água, hoje nos falta água potável, temos sede. Abundância e escassez. “Eu deveria estar fazendo mais”, “Estou culpada por ter uma cama quentinha”. O privilégio nos perturba… É a síndrome do sobrevivente com todos os seus comemorativos. A tal da máscara ser posta primeiro em si e depois em quem está do lado é coerente, lógico e até óbvio, mas dói não estar nos abrigos ajudando.

Todos falam de culpa, impressionante! Onde estava essa culpa antes da enchente? Vivemos num país de muita desigualdade. Será que a culpa por ter cama quentinha e roupa seca estava amortecida? A tragédia permitiu que ela aflorasse. O que vivíamos antes dessa tragédia nos impunha quase que uma necessidade de desmentir. Reconhecemos a desigualdade, sofremos e empatizamos com isso, mas não nos sentimos impedidos de ostentar privilégios. Agora estamos diante de algo agudo, intenso e cruel, que não nos permite desmentir, nos calarmos ou nos cegarmos diante do que se passa. Fomos inundados, sem aviso prévio. A inundação psíquica rompe com a desmentida e com qualquer defesa. Mas tem algo narcísico nessa culpa. Os pobres eram os outros, a enchente afetou gente como a gente.

Há dentro de nós um desejo de ser herói. Quem não quis ser um dia a Mulher Maravilha, o Homem Aranha, o Super Homem? Agora tem pessoas normais e reais sendo heróis – os que não estão com essa disponibilidade física e emocional se culpam por abandonar o super-herói da infância, aquele que queria salvar o mundo e muitas vezes os pais.

Voluntários que apesar de exauridos, machucados, sem dormir, se recusam a sair da água até retirar todo mundo que precise de resgate. A culpa de estarmos longe do ideal, de não ajudarmos tanto quanto gostaríamos. “Essa eu também sinto”. Ainda que a pandemia tenha nos forçado a encarar a própria mortalidade, tem algo diferente agora.

Uma resgatada humilde disse que estava angustiada porque se sentia trancada no abrigo, não podendo ajudar outras pessoas a saírem de suas casas. “Sabe, doutora, eu sei que sou pobre, não posso fazer doação, mas queria ajudar as pessoas que estão lá a tirarem suas coisas de casa”. Outras resgatadas nem falaram da enchente, parecia que era o menor dos problemas. Nunca foram tão bem tratadas como no abrigo. Para algumas pessoas abrigadas, infelizmente, essa não é a pior tragédia das suas vidas.

E a imagem do cavalo Caramelo no telhado de uma casa inundada? Mobilizou inúmeras reações. Não é porque as pessoas se importam mais com o cavalo do que com as pessoas, é porque essa imagem é a representação do que até hoje era totalmente irrepresentável. Difícil alguém ter imaginado essa cena antes. O cavalo é o retrato da nossa angústia, da nossa impotência e do nosso medo. Cavalo, um animal que é símbolo do Rio Grande do Sul, com a face de desespero (que muito lembra a imagem clássica do aquecimento global: o urso polar ilhado na jangada de gelo), envolto com as águas cor de caramelo. Ele é todos nós.

“Estar com vocês aqui tem sido fundamental”.

O dia nos consola quando amanhece sem chuva, quando nos recebe com a possibilidade de trabalho, de ajudar alguém e de alguma maneira nos sentirmos capazes. A felicidade tímida de um banho de caneca refresca e traz alento, além da convicção de que não precisamos de tanto para existir. Mais um dia e resistimos! Dias melhores virão.

Vou para o abrigo ajudar! Eu também!

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: catástrofe, enchentes, abrigo, catarse e psíquico.

Imagem: Em um cenário de pós alagamento, com represamento de água e lama e árvores ao fundo, temos pendurada em uma árvore a bandeira do estado do Rio Grande do Sul tomada pela lama oriunda das enchentes. Foto de Daniel Souza: https://www.instagram.com/p/C6wz0GQLqye/?igsh=OHlndmk2aXVmamsw

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Tags: abrigo | catarse | Catástrofe | enchentes | psíquico
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