Observatório Psicanalítico – OP 498/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Afasia criadora: O paradoxo de Primo Levi

“Este silêncio é feito de agonias”

Mario Quintana

Carolina Scoz – SBPCamp

Impossível saber ao certo quantas indômitas enchentes arrastaram para muito longe o que uma pessoa amava. Quase sempre, diante de nós, temos sobreviventes de catástrofes. Podem ser íntimas, ou transbordadas para a esfera coletiva. Em breve, os hoje desabrigados do Rio Grande do Sul serão como o velho homem que, efemeramente, tive a sorte de encontrar: seguirão elaborando, vida afora, os traumas que a imensa maioria de nós já quase haverá esquecido. Lembraremos do ocorrido, com o abstrato pesar de testemunhas longínquas. Eles precisarão recontar mil vezes o irredutível das emoções vividas no corpo. Frio, sede, dor. Sonhos naufragados, em poucas horas. Pavor, tristeza, desamparo. Uma tão bela cidade invadida por água barrenta e destroços abandonados. E a poética orla do grande lago em que o sol entrava, dourando as mansas ondulações, de repente transformada em cemitério fluvial onde roupas e bonecas salpicam de cor a turva superfície.

Na última vez que fui à Porto Alegre, há meses, subi num barquinho à vela que nos levou a circundar pequenas ilhas do Guaíba. Diana Corso, que consegue ser mais perguntadeira que eu, quis saber quem era o jovem piloto da embarcação. Receptivo ao interesse daquela passageira curiosa, respondeu que era aluno de mestrado em Literatura Brasileira na UFRGS. “Fazer cruzeiros não paga minhas despesas, mas nem considero que seja trabalho uma coisa fantástica como essa!” Contei a ele que Diana é psicanalista e escritora. Recomendei seus livros. Perguntei se lia a coluna do Mário Corso no Zero Hora. E ficamos ali conversando – o falante marujo, Diana Corso, Cláudia Antonelli, eu –, meio perdidos no tempo, numa espécie de “terceira margem do rio” que dilui marcações de relógio: lá as horas são divididas entre antes e depois do crepúsculo. Onde estará agora o jovem risonho que fazia das águas luminosas seu melhor brinquedo e seu cálido repouso? Estará resgatando cães refugiados em telhados que não submergiram no imenso lamaçal? Estará suspendendo abarrotadas caixas de livros sobre o topo de guarda-roupas? Estará apressando-se a chegar, sem medir riscos à própria sobrevivência, onde as previsões meteorológicas (esses impiedosos oráculos científicos) vaticinam próximas devastações? Estará avançando pela rodovia aturdida de carros e caminhões, num desesperado êxodo que o afasta do veleiro azul deixado para trás e, pouco a pouco, o achega a familiares isolados em alguma cidade? Estará vivo para um dia fazer, como inumeráveis escritores que o antecederam, a rompante literatura nascida do sofrimento?

Nós, aqui onde a terra permanece seca, logo poderemos descansar na prerrogativa humana de banalizar tragédias, resumindo essas semanas de maio a uns vocábulos: “terrível”, “descaso”, “crime”, “horror”, “absurdo”. Eles, os sobreviventes, para sempre buscarão o amparo de mais e mais palavras.

Quem desenvolveu essa ideia – e com a força de quem viveu o fenômeno –, foi Primo Levi. Uma ideia anunciada em “É isso um homem?” (1988) e expandida em “Os afogados e os sobreviventes” (2016), tradução correta para um título ainda mais preciso (I sommersi e i salvati) que, no original, sugere o paradoxo cujas implicações são ali discutidas: aqueles que submergiram levam consigo o profundo conhecimento que caberá aos salvos tentar comunicar. Sommersi e salvati, termos nascidos da mesma consoante, feitos da mesma entonação paroxítona – são termos que designam seres humanos irmanados: esses últimos sobrecarregados por algum tanto da colossal verdade que os primeiros silenciaram eternamente ao morrerem. Isto porque, quanto maior a exposição de uma pessoa ao nu e cru da realidade (não importa se excruciante ou esplendorosa), mais lhe faltarão as palavras capazes de tradução e mais – eis aqui outro paradoxo – essa afasia traumática precisará buscar o socorro das palavras. Aos que sobreviverem, então, restará o trabalho interminável de criar maneiras de falar, a despeito da impossibilidade de qualquer plenitude expressiva (“Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância” – não estará aqui, também Guimarães Rosa, a defender essa provisoriedade dos relatos mais viscerais?).

No prefácio de “O que resta de Auschwitz”, de Giorgio Agamben (2008), ao comentar o paradoxo salientado por Primo Levi, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin nos faz lembrar que, tal como as crianças, os traumatizados são impelidos a transformar a matéria-bruta da experiência em linguagem compartilhável – “em vez de recalcar essa existência sem fala e sem forma, sem comunicação e sem sociabilidade, saber acolher a indigência primeva que habita nossas construções discursivas e políticas, que só podem permanecer incompletas” (p. 17).

Qual a consequência fundamental disso? Os sobreviventes (e seus descendentes, por gerações) nunca encerrarão a história que narram (e não será bem isso o que continuamente os salva?).

Uma alentadora recordação que as circunstâncias fizeram emergir:

Perambular numa livraria, folheando páginas, à espera de que um parágrafo me fisgasse. Era o que eu estava fazendo quando senti alguém tocar meu ombro. Ao mesmo tempo, vi um rapaz da loja aproximar-se, sobressaltado, e avisar numa espécie de sussurro. “Ele vem aqui todos os sábados… Desculpe…”. Quem me chama por trás é um homem idoso, curvado sobre um andador. Nada diz – apenas puxa-me pelo braço até a gôndola ao lado. Alcança um volume e, sem pressa, vai e volta pelos títulos. Estou atônita, aguardando nem sei o quê. O vendedor observa a cena insólita, sem interferir. Por fim, o homem segura aberta uma antologia de Mario Quintana, emitindo barulhos guturais que imagino significarem: “Esse mesmo!”. Vejo que o anônimo senhor mudo pede que eu leia para ele “A grande enchente” (2005, p. 410-411), poema desconhecido para mim. Segura firmemente o tecido da minha blusa, não como um apoio, mas para que eu não escape da tarefa. Há algo urgente em sua demanda. Não é uma mera sugestão de leitura oferecida por um generoso transeunte. Seu resoluto movimento apresenta um imperativo – que trato de acatar.

Cadáveres de Ofélias e cadelas mortas

virão parar por um instante às nossas portas.

Porém, sempre à mercê dos redemoinhos

prosseguirão depois seus incertos caminhos…

Quando a água alcançar as mais altas janelas

eu pintarei rosas de fogo em nossas faces amarelas.

Que importa o que há de vir?

Tudo é poupado aos loucos

e os loucos tudo se permitem. Vamos!

Espíritos de deuses, sobre as águas pairamos.

Alguns de nós dizem que apenas somos nuvens…

Outros, uns poucos,

dizem que somos nada mais que mortos.

Mas não avisto, lá embaixo, nossos próprios

defuntos… E em vão, também, olho em redor…

Onde é que estão vocês,

amigos, amigas, dos primeiros e dos últimos dias?

É preciso, é preciso, é preciso continuarmos juntos!

E, então, num último, e diluído, e triste pensamento

eu sinto que meu grito é só a voz do vento.

Termino de ler o texto, esses poucos versos. Ouço uma palavra rouca e forçada: “Ma-ra-vi-lha”. Ele sorri. E fecha os olhos. “Ma-ra-vi-lha”, repete, dizendo aquilo para si.

Ele conhecia o poema, eu não. Faltava-lhe alguém que fizesse as palavras ressoarem. Para isso, teimava em romper as solidões de pessoas absortas em livros dispersos, até que alguém pronunciasse aquelas exatas frases para ele.

Ele sabia, eu não: mesmo que seja preciso tomar emprestada a voz alheia, há quem lute uma vida inteira para encontrar narrativas que deem algum sentido às angústias persistentes, essas que a mente jamais conseguirá assimilar de uma vez por todas.

(Com gratidão ao Observatório Psicanalítico, esse lugar de escuta infinita)

Referências:

Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz: O arquivo e a testemunha. Boitempo.

Quintana, M. (2005). Poesia completa. Nova Aguillar.

Levi, P. (1988). É isto um homem? Rocco.

Levi, P. (2016). Os afogados e os sobreviventes. Paz & Terra.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Tragédia, Traumático, Trabalho do luto

Imagem: foto da autora “Por do Sol no Guaíba” (2023)

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Tags: Trabalho do luto | tragédia | Traumático
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