Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Mudança catastrófica: estamos afogados em lágrimas e solastalgia
Maria Luiza Gastal – SPBsb
Escrevo sob o impacto das cenas da mais recente catástrofe ambiental que se abateu sobre meu estado natal, o Rio Grande do Sul. Depois de haver subido mais de cinco metros, o Guaíba, mais uma vez, e de forma mais contundente, reclamou para si o espaço que Porto Alegre lhe tomou. Oitenta e três anos após a enchente da qual cresci escutando falar pela boca dos mais velhos, a cidade, a despeito do muro e dos diques, submergiu outra vez, com o rio se elevando a uma altura maior do que aquela de 1941. Apesar do muro que deveria lhe manter fora das ruas da cidade, lá está ele, e numa foto que recebo, outro barco se aproxima do Mercado Público, espaço de encontro dos habitantes daquela que costumava ser chamada pela alcunha de “Cidade Sorriso”. Não hoje.
Glenn Albrecht (2005) cunhou o neologismo “solastálgia”, palavra que se apoia em ‘solace’ e ‘desolation’, expressões inglesas de origem latina. Solace evoca conforto ou consolo diante um sofrimento ou evento angustiante. Desolation liga-se a abandono e solidão e “algia” refere dor, sofrimento ou doença. Solastalgia é a “dor ou doença psíquica decorrente de uma perda ou do sentimento de isolamento ligado à supressão, aniquilamento ou risco de desaparecimento da casa ou do território de alguém”. É o sofrimento de sujeitos ou comunidades quando seu local de moradia e vinculação territorial é atacado, erodindo o senso de pertencimento e identidade.
Hoje sou pura solastálgia. Não consigo deixar de olhar as imagens do centro histórico de Porto Alegre, onde cresci, morei, estudei, brinquei. Vejo a água sob os arcos do Hotel Majestic, onde Mario, amigo e colega de meu pai, vivia e escrevia poemas. Olho fotos em que a Usina do Gasômetro, que ainda vi funcionar em minha infância e que depois abrigou uma sala de cinema com o nome de meu pai, aparece cercada de água. Vejo a rua onde minha prima mora, no Menino Deus, a bela Av. Bastian, tomada pelo rio, assim como a orla de Ipanema, onde morava minha amiga Rosa, cuja mãe tinha uma casa de chá chinesa. Encontro o Mercado Público, para onde convergem todas as culturas de Porto Alegre, alagado mais uma vez.
Parte de mim se afoga com minha cidade. E isso nem é o pior. As cenas do interior mostram uma violência destruidora e descomunal, trazem números de mortos, desabrigados, desaparecidos, cidades completamente submersas, algumas pela terceira vez, desde setembro do ano passado, quando um ciclone extra-tropical assolou parte da serra e do Vale do Taquari. Pessoas que acabaram de reconstruir suas casas, suas vidas, sua história vêem tudo mais uma vez consumido pela fúria da catástrofe.
Às notícias de Porto Triste e do interior do Rio Grande do Sul, tão parecidas com as das catástrofes de Petrópolis, Bahia, São José do Rio Preto, Espírito Santo, Ubatuba l, Santa Catarina (todas nos últimos dois anos), somam-se tantas outras notícias assustadoras. A de que a onda de calor no Sudeste e Centro-Oeste, com temperaturas de até 5oC acima da média pode se estender por todo o mês de maio. Ou a de que no ano passado o mar da Flórida atingiu a temperatura de 38,4oC, enquanto dezenas de pesquisadores e voluntários tentavam salvar amostras de cada espécie de corais para serem conservados em tanques climatizados de água salgada. Ou ainda a de que o derretimento das geleiras torna a escalada do Everest mais perigosa, porque os caminhos conhecidos mudam constantemente, e a redução da cobertura de gelo põe à vista (e ao olfato) 3 toneladas de excremento humano deixadas pelos turistas. Ou de que novos recordes de calor oceânico, aumento do nível do mar, perda de gelo marinho na Antártica e recuo das geleiras foram quebrados. Ou de que o Relatório da Organização Meteorológica Mundial mostra que 2023 foi o ano mais quente já registrado e de que a previsão é de que 2024 seja pior.
Gaia, conceito proposto por Lovelock e Margulis na década de 1970, nomeia o conjunto de relações que ocorre no planeta que articula seres vivos, oceanos, atmosfera, clima, solos. Gaia é “planeta vivo”, ser dotado de uma história, de um regime de atividades próprio, oriundo das múltiplas e intrincadas formas pelas quais os processos que a constituem articulam-se uns aos outros, com a variação de um repercutindo de forma múltipla sobre os outros.
Isabel Stengers (2015) chama de “intrusão de Gaia” o enorme acontecimento (e não mero problema ou crise) que se manifesta no aquecimento global e eventos associados – extinção massiva de espécies, acidificação dos oceanos, pandemias, eventos climáticos extremos e tantos outros. A intrusão de Gaia – ou o Antropoceno – se impõe na realidade das catástrofes. Gaia reage não como vingança, mas como consequência do que a afeta. Gaia é indiferente à pergunta “quem é responsável?” e não age como justiceira — parece que as primeiras regiões da Terra a serem atingidas serão as mais pobres do planeta, sem falar de todos esses viventes que não têm nada a ver com a questão. (…) Simplesmente, não é da conta de Gaia. (…) A intrusão do tipo de transcendência que nomeio Gaia instaura, no seio de nossas vidas, um desconhecido maior, e que veio para ficar (Stengers, 2015, p. 52).
Indiferente ao Homem (maiúsculo, como assinala Latour, p. 23, falando “de todo mundo de maneira indiferenciada e preguiçosa”), entidade mítica que acreditava tudo poder e tudo resolver com a Cultura e a Ciência, Gaia se impõe. A Ciência, maiúscula, masculina, a despeito da discordância da língua, européia, que alimentava nossa ilusão de que a razão e o progresso nos salvariam de todas as crises, alerta-nos de que o fim do mundo – desse mundo – é inevitável. Gaia é soberana, sua intrusão não nos permite mais ignorá-la, ou chamar o que estamos vivendo de “crise” climática. Não conhecemos o futuro, mas sabemos que ele será hostil, como é o presente. A emergência climática nos deixa pouco tempo para imaginar e construir um futuro hostil, e não mortal, e dela emerge um mundo que não conhecemos, com novos regimes climáticos e hídricos, menos espécies, menos alimento, novas doenças. Não há mais lugar nem tempo para a desmentida.
Mesmo assim, escuto tantos dizerem que isso é normal, sempre houve esse tipo de acontecimento, que a vida é assim mesmo…
A tanatologista Kriss Kevorkian (2019) cunhou o termo “luto ambiental” buscando as razões de nossa inação diante das evidências inegáveis de que a mudança climática afeta o planeta e a psique humana. A motivação para a ação dependeria de reconhecermos nosso “luto ambiental”, mas não temos um léxico análogo ao do luto humano para a perda de nosso mundo natural e seus efeitos, como as patas queimadas de uma onça no Pantanal incendiado. É um “luto desprivilegiado”, diz Kevorkian, nome dado por Ken Doka, também gerontologista, ao luto não reconhecido ou invalidado, como o resultante de suicídio ou aborto (Rosenfeld, 2016). Diante de um luto invalidado, a desmentida é uma saída de vida.
Confrontada com tanta dor e com o luto invalidado do mundo, o que pode a psicanálise? Bion (1965) caracteriza a mudança catastrófica como aquela que produz uma subversão da ordem ou sistema de coisas, acompanhada de sentimentos de desastre nos participantes, brusca e violenta de um modo quase físico. Mas em Memória do Futuro (1991) ele assinala que a mudança catastrófica, mais do que um colapso, pode também representar uma erupção ou desobstrução. O que vivemos é uma catástrofe: aquele evento da tragédia grega que rompe com o presente e lança o futuro numa estrada desconhecida, numa nova ordem que desconhecemos.
A psicanálise nasceu, na modernidade, como mais uma aposta de que a Cultura e a Ciência nos libertariam das garras da natureza hostil e nos levariam à solução das crises que nós mesmos nos impusemos. O Homem, apesar das forças do inconsciente (também elas em parte natureza), seria capaz, agora por um trabalho de autoconhecimento, de enfrentar e vencer (ainda que parcialmente) as agruras do mundo natural, este outro ameaçador, ainda que ao preço de um inevitável mal-estar.
Mas a má notícia é que as ciências não nos prometem mais saídas, passando a nos exigir ações e mudança. Aquele mundo já não existe mais e o Homem já não pode (nunca pode, de fato) tudo, ao contrário.
No mês passado, a colega Liana Albernaz de Melo Bastos, da SBPRJ, lembrou-nos de que seria o tempo de aprendermos com os cunhados, abandonar a ideia de que “só podemos nos ligar a alguém que esteja na mesma relação com um terceiro termo superior: pai, pátria, religião, ideologia”. Sendo nossa fratria capitalista incapaz de pensar um mundo diferente, é tempo de conversar com cunhados, os diferentes que sustentam o céu com suas culturas originárias. Com eles podemos, inclusive, aprender alguma coisa sobre como viver o fim do mundo, experiência que conhecem. Precisamos sonhar outro mundo.
A psicanálise do mundo das catástrofes precisa ser capaz de imaginar este outro mundo, com outras relações. Precisa ser capaz de se debruçar sobre subjetividades que emergem nesse novo e ameaçado mundo, iluminada pela catástrofe que não vai passar, mas se agudizar. Não se separam os fatos da emergência climática do fazer da psicanálise, porque a psicanálise não pode ficar apartada do mundo, debruçada sobre um inconsciente sem história social. O mundo da catástrofe também está lá, na sala de análise, e ele está acabando.
Referências:
Albrecht, G. 2005. ‘Solastalgia’. A new concept in health and identity. PAN: philosophy activism nature, (3), 41-55.
Bion, W. R. 2005. Transformações: do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago (ed. rriginal de 1964)
Bion, W. R. 1991. A memoir of the future. London” Karnac Books.
Cunsolo, A., & Ellis, N. R. 2018. Ecological grief as a mental health response to climate change-related loss. Nature Climate Change, 8(4), 275-281.
Kevorkian, C. 2019. On environmental grief and the rights of nature.
https://seeingthewoods.org/201
Latour, B. 2020. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Ubu Editora
Lovelock JE, Margulis L (1974) Atmospheric homeostasis by and for the biosphere: the Gaia hypothesis. Tellus 24:2–9
Rosenfeld, Jordan. 2016. ‘Facing Down “Environmental Grief”’. Scientific American, 21 July.https://www.scientificame
(4) (PDF) Interrogating the five stages of (ecological) grief. Available from: https://www.researchgate.net/p
Stengers, Isabelle. “No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima.” São Paulo: Cosac Naify (2015): 203.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chave: Mudança Climática, Cidades, Porto Alegre, Solastalgia, Catástrofe, Sofrimento
Imagens: Mateus Bruxel/Agencia RBS; Rafael Guimarães/A enchente de 41, Ed. Libretos
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