Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Vou confessar uma infâmia
Vanessa Corrêa – SBPSP
Quando eu era criança meu pai me levava para ver brigas de galo, levava como álibi, disfarçava como passeio, talvez porque minha mãe desaprovasse as idas dele na rinha, local onde as apostas aconteciam, ou talvez porque assim ele diminuísse sua culpa por praticar aquela atrocidade.
Depois de muitos anos de análise, cheguei à conclusão de que nenhuma cena foi tão cruel para mim quanto as imagens dos galos presos em uma arena de madeira, armados com esporas de metal, lutando até a morte, apenas para o deleite sádico de um bando de homens. Homens socialmente oprimidos e impotentes, marginalizados, trabalhadores como meu pai em profissões sacrificantes que só suportavam por causa do álcool, da religião e dessa violência que se elaborava testemunhando a morte em locais como aquele. Homens abandonados pelo sistema e que por isso morrem cedo: caminhoneiros, pedreiros, ajudantes da construção civil, pintores, lixeiros, e de vez em quando aparecia algum advogado ou médico que os inibia e ao mesmo tempo orgulhava. Comentavam entre si: “até o doutor fulano vai à rinha”, como se o doutor fulano viesse de um outro mundo. Um mundo para onde eu queria ir.
Eu não sei se aprendi mais sobre vida e morte, guerra, amor e ódio, paixão, sadismo, violência com Freud ou se nessas competições sangrentas.
Às vezes algum galo semi-morto ia parar secretamente no ambulatório do meu pai, um cantinho no porão de casa onde ele costurava, medicava e aquecia com panos e uma luz vermelha, cuidando com zelo para que o bicho se recuperasse. Caso isso acontecesse, o galo voltava para a rinha, até ser morto definitivamente. (Machado de Assis narrou esse voyerismo sádico com outras metáforas em um conto brilhante chamado “A causa secreta”).
Não havia mulheres lá e ninguém olhava para mim, definitivamente uma menina de seis anos é um corpo estranho que não se quer enxergar nesse meio. Toda sensibilidade deveria ser varrida para debaixo dos porões. Toda poesia deveria ser vetada. Depois a escola me salvou e fui me afastando desse mundo, fugindo dos passeios do meu pai e me refugiando na biblioteca. No entanto, muito cedo a rinha se instalou em mim como um modelo terrível sobre como se operam as relações e constatei horrorizada, antes mesmo de conhecer a psicanálise, que embora no “mundo civilizado” a violência seja mais disfarçada, o funcionamento é o mesmo.
Quando cheguei à faculdade de medicina via que as disputas de poder não eram tão diferentes das brigas de galos: os chefes colocavam residentes e alunos da graduação para defender seus pontos de vista até a morte, se preciso. Na sociedade de psicanálise as disputas são acirradas. Muda a plateia e os galos vestem camisas de linho. No cardápio, ao invés da salsicha em conserva e da cachaça, comemos quiches e bebemos espumantes.
Mas ainda olho e não vejo espaço para a criança e nem para a mulher que há em cada um: a poesia é meramente enfeite na maior parte dos artigos onde aparece e performamos como se estivéssemos em arenas quando apresentamos algum material: quem dá o pulo mais alto e eriça mais as penas do pescoço? Ganha quem veste com mais veemência a espora do Freud, ou do Bion, ou de algum autor da moda.
Fernando Pessoa disse que entre seus conhecidos, imagino que homens, nunca conheceu quem tivesse levado porrada: “todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo” e continua em linha reta: “quem me dera ouvir de alguém a voz humana/que confessasse não um pecado, mas uma infâmia/que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!”. Talvez ele não conversasse com sua idealizada Ofélia. Imagino que se ele fosse mulher, teria conhecido muitas que levaram porrada e que confessam infâmias como essa, a de ter sido criada cara a cara com a violência.
Adélia Prado pede licença poética para reclamar de “carregar bandeira, cargo muito pesado pra mulher/ esta espécie ainda envergonhada”. Pois concordo com Adélia: pesa e cansa carregar as mesmas bandeiras, dia após dia, e saber do crescimento do movimento das mulheres antifeministas e ter que ouvir homens dizendo, até dentro do movimento psicanalítico, que não compreendem o porquê de uma bandeirona tão grande, com tantos signos: aborto, feminicídio, igualdade salarial. Bandeira que faz sombra sobre tantos. Cansa ver os tantos Robinhos, Daniéis, Alves e outros, que por causa de dinheiro e poder, saem com a crista erguida depois de estuprar uma mulher.
Mas o que talvez cansa mais é ter que explicar reiteradamente que a luta feminina não se dá no ringue, e que quando uma mulher morre ensanguentada, não queremos que outra ocupe seu lugar. A causa feminina não segue o modelo da rinha de galos, pelo contrário é luta por proteção, cuidado, liberdade, sororidade. As mulheres querem saber se seus filhos estão bem cuidados quando saem para trabalhar, querem rede de apoio quando se sentem ameaçadas em uma balada ou quando temem pela própria vida ao desejarem sair de um relacionamento abusivo. Não querem uma guerra estéril só por ver sangue.
E se a discussão vai para a rinha, perdemos todos a poesia, porque a criança foge de dentro de nós, já que não suporta mais ver briga de galo.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chave: feminismo, mulher, briga de galo, disputa de poder
Imagem: The Cock Fight, Emile Claus, 1882. @allartmagazine
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