Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Juntos para sempre
Sylvain Levy – SPBsb
Recentemente publiquei uma pequena observação, sob forma de comentário, a um dos diversos textos editados no OP sobre mulheridade. (Uso essa expressão, que espero seja melhor contextualizada adiante, para tentar escapar de termos como questão da mulher ou questão feminina, ou a questão da mulher no nosso tempo ou termos equivalentes, posto que não os considero adequados, no meu entender, por não abranger o conteúdo do assunto). Nesse comentário constata que homens não escreviam sobre os temas que estavam sendo tratados no OP e quando o faziam era como comentários sobre os escritos feitos por mulheres ou instigados a fazê-los, sem iniciativa própria.
Rapidamente a sempre atenta Beth Mori me respondeu lembrando textos de Valton Leitão e Cláudio Eizirik, ao que eu respondi que isso simplesmente confirmava minha observação, pois o primeiro comentou um texto e o segundo, conforme suas próprias palavras, foi convidado pela Curadoria a escrever. Dois excelentes exemplos da capacidade masculina de abordar o assunto.
Também fui estimulado a escrever sobre o machismo, mas eu pensei que incorreria na mesma situação que observei aqui no OP e redundaria na continuidade splitada: mulher escreve sobre mulher e homem sobre machismo. Me lembrei de uma piada antiga, onde um velhinho entra num bar e é incomodado pela postura agressiva de outro frequentador que ao final de um discurso ameaçador grita “porque aqui nessa cidade somos todos machos”. Numa voz baixa, mas firme, retruca o velho: “na minha não. Lá nós temos metade homem e metade mulher e nós se damos muito bem, assim”.
Anandrismo pode ser considerado como o contrário de misoginia, mas é um termo criado por mim, pois nos dicionários de antônimos consultados não encontrei esse conceito, e essa peculiaridade da língua também me chamou a atenção. Homem pode ser misógino e mulher pode ser anti-homem, mas não tem como dizê-lo em uma única palavra. Belo estímulo ao folclórico “mulher fala demais”.
A diferença de potência entre os dois gêneros pode ser percebida em duas palavras. Deus e deusa, grafadas assim mesmo. O Deus monoteísta, masculino como substantivo próprio que tem a primeira letra em maiúscula é nome, e deusa, toda e sempre é grafada em minúsculas. Essas caracterizações de formas e conteúdos foram inculcadas durante séculos, o masculino é único e imponente, a feminina é comum.
Até onde entendo a mulher nem quer tomar o lugar do homem nem quer ser igual ao homem. Quer ser mulher, tratada como mulher, conhecida e reconhecida como mulher. Não quer ser um não homem. Quer ser dona de seu corpo e de sua vontade, precisa ser ouvida quando diz sim e principalmente, quando diz não. Quer ser respeitada quando não souber se diz sim ou não, quando suas dúvidas e dubiedades ficam expostas. Em todas essas situações a mulher dispensa ser alvo de olhares piedosos ou irônicos, de comentários críticos e exigências de racionalidade.
Enquanto apenas as mulheres escreverem e falarem sobre mulheridade continuaremos a viver e, alguns e algumas, a lutar contra o sexismo da mesma forma como se combate o racismo, o autoritarismo, o etarismo, o esteticismo padronizado e tantas outras discriminações sociais. Esse não é um tema para ser privilegiado e pensado como exclusivista da mulher, é de todos, segregados ou não. Além do que, de uma forma ou de outra é provável que todos, de algum modo, em algum momento, em algum lugar, soframos alguma forma de discriminação.
Acredito que se trata de uma maluquice, autêntica folie-à-deux, onde um segmento social – o masculino, fantasia que tem o poder e um outro segmento – o feminino, faz de conta que acredita e estimula o outro a continuar acreditando e, assim, permite que algumas responsabilidades fiquem a cargo desse primeiro grupo. Como exemplo podemos lembrar a manutenção da família, tradicionalmente colocada na esfera da competência masculina, mas quando é chamada para isso a mulher se desincumbe sem muitas dificuldades.
Acontece que o uso do cachimbo faz a boca torta e o homem acaba por assumir esse ônus e como controla o dinheiro, na maioria das vezes, controla o restante também.
No domínio familiar, ainda nesse contexto, o medo joga um papel importante. A mulher objeto não é apenas aquela da fantasia sexual, é também a da posse. A relação escrava-senhor serve a ambos durante o tempo que for do interesse dos dois. Segurança, rotina, transferência, costume e hábitos são elementos que auxiliam a lidar com as angústias amedrontadoras de ambos os parceiros na impensável (no sentido de vir à consciência), mas sempre presente a hipótese da solidão pelo abandonar ou ser abandonado(a).
No atual estágio civilizatório ainda se busca não permitir, e mesmo impedir, que a mulher seja dona de nada ou alguma coisa, a começar pelos próprios desejos e corpo. Ser dona é estar na posse, é possuir algo de seu. Mesmo que seja pouco e pequeno o que importa é a experiência, a vivência e o movimento de ter a posse de alguma coisa. Esse é o desafio do poder. Poder ter. Passo fundamental no processo de poder ser.
E aí entra a questão do aborto. Nem pensar ou só nos casos permitidos por lei e definidos, em sua maior parte, por homens. Extrapola todo o inimaginável que além da posse sobre seu próprio corpo, além do controle sobre uma parte de seu destino a mulher ainda vai definir o destino de algo que só está transitoriamente sob sua guarda. É preciso reconhecer e lamentar que já está sendo difícil, em boa parte do mundo atual, lidar com o reconhecimento do direito da mulher no dizer não em termos de desejos. É como se fosse impossível a uma mulher recusar ou não aceitar o sacrossanto “destino” de toda mulher, o de ser mãe.
A mulher como mãe já ocupa tempo e espaço psíquicos únicos. Como esposa/companheira já preenche pensamentos, fantasias e desejos inconscientes. Se dominar também a realidade objetiva a fantasia de poder do masculino não resistirá a outros milênios.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chave: mulheridade, anandrismo, poder ter e poder ser, angústia de abandono, participação.
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