Observatório Psicanalítico OP 483/2024

 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Mil lágrimas de culpa e o milagre da redenção

Gabriela Seben – SBPdePA

Certa vez, durante uma conversa entre mulheres, ouvi de uma senhora idosa que a culpa é um sentimento tão íntimo ao universo feminino que nos acostumamos a senti-la. Esta mulher carregava nas costas uma existência permeada por culpas muito profundas, sobretudo em relação a um aborto feito no passado. Embora não tenha sido nenhuma novidade, aquelas palavras, ditas daquela forma, fizeram eco em mim, não apenas porque vinham de uma mulher com experiência de vida, mas também porque pareciam soar como sentença para um destino inevitável: nós, mulheres, estaremos para sempre fadadas à culpa? 

Acrescente umas pitadas de sal a mais a este infortúnio se esta mulher for, também, uma mãe. 

Lembrei-me de outra situação, desta vez com uma mulher jovem que havia recebido uma proposta de trabalho bastante vantajosa financeiramente, mas que exigiria dela passar alguns dias fora da cidade. Como o marido e a filha iriam se virar na sua ausência? Ela pretendia deixar tudo anotado, mas e se ele esquecesse o lanche? E se a filha pensasse que ela é uma péssima mãe porque iria se ausentar? E se o marido não aguentasse sua ausência e a abandonasse? E se todo esse sentimento fosse um grande exagero? E se, e se, e se…martelava em sua cabeça a melodia infernal…

A culpa, para Freud, se origina como conceito a partir de 1912, com a introdução dos mitos e a proibição do incesto e do parricídio. Se articula não somente às ações realizadas, mas à fantasia de realizá-las. Dito de forma simplificada, é a expressão da ambivalência e do antagonismo entre as pulsões, e decorre da renúncia à satisfação pulsional exigida pelo Supereu. Na culpa neurótica, o Supereu pune o Eu, não necessariamente por realizar concretamente um desejo, mas pela própria fantasia de realizá-lo. Freud coloca ainda a ideia de que o sentimento de culpa é o preço que pagamos por viver em sociedade; é o mal-estar na cultura. 

Diversas vezes, em situações similares às da jovem e da mulher idosa, poderíamos evocar a neurose e pensar que, se estivessem elas em um processo de análise, haveria um longo caminho a percorrer para desatar os nós que entrelaçam desejo e culpa (um clássico dos divãs!). E em absoluto este é um caminho simples ou fácil de trilhar. Até mesmo porque, por trás da culpa, pode haver também uma ilusão onipotente, uma fantasia de poder, de que “sem mim, nada acontece”. Poderíamos supor também que a mulher jovem viveria mais tranquila se delegasse mais ao marido, se pudesse confiar que o mesmo irá cumprir com os combinados, ainda que à sua maneira, afinal os homens também são capazes de trocar fraldas, partilhar tarefas de casa e se ocupar dos filhos, e eles vem fazendo isso mesmo (muitas vezes a duras penas e mediante cobranças, diga-se de passagem, mas cada vez mais). 

Mas também podemos escolher ampliar os caminhos da escuta, seja dentro ou fora da sala de análise, uma vez que o problema parece ser ainda mais complexo e ultrapassar questões individuais e subjetivas. Tanto a mulher idosa quanto a jovem, para além das singularidades e das diferenças geracionais que as separam, compactuam de um doloroso sentimento de culpa, fantasma já conhecido, que volta e meia aparece para assombrar. A mulher que, no puerpério, sente um vazio imenso onde em seu lugar era esperado um amor sublime pelo bebê que pariu, teme falar da culpa que sente. A mulher que imaginou que daria conta de duplas ou até mesmo triplas jornadas, se sente culpada porque não consegue administrar tudo tão bem quanto o esperado. A mulher que interrompeu uma gestação porque não se imaginava como mãe, sente culpa. E, pasmem, até mesmo quando o marido não é um bom pai as mulheres são responsabilizadas por terem feito uma má escolha! Dificilmente uma mulher não irá se identificar com tais situações. Elas são cotidianas, mas pesam, dilaceram e gritam através dos sintomas espalhados por nossos corpos.

Evidentemente a culpa é um sentimento humano, e não restrito às mulheres, mas no mundo contemporâneo é sobre elas que incide a maior parte das exigências para que correspondam a determinados ideais, fortemente presentes em nossa cultura: ser boa profissional, boa mãe, ter tempo suficiente para cuidar de si mesma, manter-se jovem, esbelta e por aí vai uma lista interminável. Esta conta, definitivamente, não fecha.

As mudanças decorrentes das lutas feministas proporcionaram às mulheres adentrar um universo considerado “masculino”. Antes extremamente restritas ao cuidado do lar e dos filhos, as mulheres conquistaram o mundo do trabalho, buscando estar em pé de igualdade com os homens. Entretanto, adicionaram às suas rotinas, além do trabalho fora de casa, o trabalho no lar, pelo qual não recebem remuneração. A situação é ainda mais problemática quando se trata de mulheres negras e periféricas. O fato é que, ainda hoje, as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado da família. 

O contexto atual em que vivemos, regido pelo sistema patriarcal dominante e pela lógica neoliberal, fomenta um ideal inalcançável, responsável pelo sentimento de culpa tão comumente relatado pelas mulheres. Mas estes ideais impregnados na cultura surgem muito antes do ingresso no mercado de trabalho. A idealização em torno da figura feminina é antiga e envolve, por exemplo, a convicção de que mulheres suportam uma carga maior de sofrimentos, que estão mais aptas à execução das tarefas do lar e, como se já não bastasse, que possuem um instinto materno. E não se trata de negar possíveis diferenças entre os gêneros, mas questionar a ideia de que essas supostas vantagens usadas como elogio às mulheres, apenas contribuem para a sua sobrecarga física e mental, alimentando a culpa por não darem conta de tudo (Degani, Seben, 2022).

Até hoje mulheres vêm se debatendo para tentar diluir os papéis tradicionais de homens e de mulheres, sem saber exatamente como fazê-lo e como deixar de lado a culpa que as persegue desde sempre, identificadas com a forma como foram criadas para serem mulheres. Encharcadas pelos ideais de eficiência dos tempos atuais, quando algo falha, entendem-se como incapazes. A culpa é também resultado dessa ilusão de nunca poder falhar.

Diante deste cenário produtor de sofrimentos, como a psicanálise poderá contribuir para arrefecer a culpa que aprisiona e maltrata mulheres e mães há tantas gerações, como enfaticamente apontou aquela senhora durante uma simples conversa? 

Penso que a resposta está em fazer trabalhar a teoria, o que certamente produzirá efeitos importantes na escuta e em nossas intervenções, se estivermos mais conectados às causas deste mal-estar contemporâneo. 

Para além das paredes de nossos consultórios, creio que a resposta pode estar na luta incansável de mulheres cansadas, e se junto delas houver bons aliados, as chances se ampliam. E torço que as encontremos também na sabedoria dos poetas, que desde que o mundo é mundo aparecem para afugentar assombrações. 

“Mulher, em caso de dor ponha gelo,

Mude o corte de cabelo,

Mude como modelo,

Vá ao cinema, dê um sorriso,

Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo

Se amargo foi já ter sido

Troque já esse vestido

Troque o padrão do tecido

Saia do sério, deixe os critérios

Siga todos os sentidos

Faça fazer sentido

A cada mil lágrimas sai um milagre” (Milágrimas – Alice Ruiz)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: culpa, mulheres, feminino, psicanálise, sofrimento 

Imagem: Welcome b.l.ack de Viki Kollerova, 2018.

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Tags: culpa | feminino | mulheres | Psicanálise | sofrimento
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