Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Da tinta no papel à construção da feminilidade: escritas à mão!
Morgana Mengue Saft Tarragó – SBPdePA
Eu tenho muita saudade!
A história contada por minha mãe foi comprovada verdadeira quando, já de posse da capacidade de decifrar os códigos da língua escrita, descobri em meu álbum de bebê a resposta à pergunta sobre meu primeiro brinquedo preferido: Canetas!, na letra do meu pai. Era verdade que eu pintava, rabiscava, marcava todo e qualquer objeto no qual a tinta aderisse: paredes, portas, armários, bonecas e, eventualmente, papel. Das parcas lembranças registradas, eu queria mesmo escrever, pôr letras que conjugassem sentidos! Eu acho que queria contar histórias.
Ao longo da vida, qualquer sutil percepção de um detalhe no mundo me remetia a frases que se transformavam em parágrafos, que intercambiados e relacionados, às vezes rimavam e nasciam poemas. Do cotidiano, lírico em suas nuances, brotavam contos e crônicas. Minha pretensão era escrever, o prazer estava nesse ato restrito, com potencial e ganhar o mundo, por mais pequenino que fosse sua amplitude de alcance. A transposição das ideias para o papel me era, verdadeiramente, prazeroso e uma área livre de conflito.
A escrita, como ato criativo, exige um recolhimento narcísico. Neste recolhimento, levamos conosco todos aqueles que nos constituíram, desde as primeiras identificações, da primária-passiva, quando somos, até o que tornamos nosso, e então, temos. Assim, entendo o processo de escrita: como um recolhimento especial, um recolhimento com o semelhante, por isso, a escrita é uma festa!
O feminino é constitutivo do psiquismo, visto que ele marca a disposição originária do bebê freudiano, bebê marcado pela chegada ao mundo desamparado, incapaz de sozinho ligar e encontrar vias de descarga da intensidade pulsional da qual nasce sujeito (Paim e Quadros, 2008). A necessidade da presença de um outro que traga consigo a possibilidade de oferecer ao recém-nascido uma ação específica (Freud, 1950 [1895]) de qualidade, faz da mãe ou de seu substituto, o responsável pela abertura que instaura a psicossexualidade, como também confirma a sujeição e a passividade como marcas inquestionáveis do início da vida de todos.
Seria a construção do feminino, também marcado por um tempo de recolhimento, o desfecho de um ato criativo: ser mulher? Seria assim, a escrita uma produção do feminino? Dessa capacidade de voltar-se para dentro e desde lá, gestar antes de fazer nascer, assim, como por extensão seria, todo e qualquer ato criativo? Feminino pela capacidade, sustentada pela condição passiva de suportar e mesmo desfrutar da espera, bem como, de entregar ao mundo o fruto do seu ventre/psiquismo, para que este conquiste vida própria?
Do mais de dentro, autoerótico, em seus inícios, a escrita culmina em um encontro, capaz de ser múltiplos. Por mais íntimo que seja, um destinatário se faz presente. Há, sempre, um alguém a quem endereçamos. Assim, escrever é um destino pulsional, nobre se tomado desde o ponto de vista da sublimação, mas intercambiável com o erotismo pulsante e mergulhado entre a tinta, o papel, a mão que escreve, o psiquismo que se deleita e o encontro marcado com o outro que lê.
Quando escrevo, as bordas do papel são campo fluido, aberto, disposto a ser rabiscado, marcado, alterado em suas formas originais, para sempre. Não me inibo frente ao vazio-branco, meus olhos retornam do mundo e lá, encontram abrigo. A folha me serve como uma espécie de espelho, não porque me vejo nas letras encadeadas, senão, porque me reconheço nelas, me surpreendo, quase me encanto. Uma vez escrito, algum rastro sempre pode me pôr no caminho de volta para reescrever. Cada marca é preciosa, não precisa ser conservada tal qual nasceu. Assim também o destino da língua escrita não está dado desde sua origem, à medida em que ganha vida e, pretensamente, movimento, vai fazendo caminhos de encontro.
À parte de todas outras áreas repletas de conflito, revelei que escrever está livre, assim, como mais tardiamente, me encontrou a maternidade. Esclareço que área livre de conflito é outra coisa que nada tem a ver com não viver com alguma angústia, saber ou não errar, senão, trata-se da possibilidade de ter menos medo, sentir-me amparada e com suficiente condição de fazer de novo, sem o risco de causar danos irreparáveis ao papel e ao psiquismo desse outro que, um dia, dependeu quase absolutamente de mim. A maternidade não é tema para agora, mas foi pelo encontro da escrita e da maternidade que ocorreu pensar sobre a construção da feminilidade, essa coisa que se escreve por linhas tortas, num zigue-zague de investimentos da pulsão, obscuro, enigmático para os homens, para dizer o mínimo sobre sua preguiça. Para as mulheres, um mundo vasto a ser descoberto, ainda em tempos em que as sexualidades estão, todas, postas à prova. “…é hora de (…) nos perguntarmos qual pode ser a gênese dessa frequente inadaptação da mulher à sua função erótica” (Bonaparte, 2022.)
Conhecemos os escritos freudianos (1923, 1924, 1935, 1931, 1933, 1937), e suas tentativas de compreender, através de nós, mulheres, o enigmático que habita a todos, mas não pretendo deter-me agora nisso que já nos foi dado a ver. Proponho, como outras antes já vem tentando há décadas: sermos lidas em nome próprio.
Comecei esse texto fazendo uma confissão. Mas a saudade que sinto é de escrever? Não só, a escrita é produto, a saudade que sinto é dos encontros com os outros em mim, da fertilidade da dança das letras, da gestação das ideias, do nascimento de um texto que eu pretendo vivo, por isso, compartilhável, não pronto, mas potente em sua capacidade de marcar diferença. Eu tenho saudade disso que não cabe na palavra e no ato de escrever, mas pode ser, por ela, expressa!
E o feminino, o que tem a ver com isso? Ele está na tinta que marca ou na passividade do papel que recebe? O feminino poderia ser o que nasce entre? Não é todo ativo ou passivo, é também um e outro? Biologicamente falando, é o útero que recebe, mas o corpo todo que gesta e pari. É o seio que o bebê busca e é o leite a ele ofertado. Masculino e feminino se inscrevem no sujeito, nenhuma subjetividade está dada desde o início, mas entre o que se inscreve e o que é escrito, podemos aí, neste ponto de convergência, fazer algum paralelo de similaridade com a construção do feminino?
Não tenho condições de ir adiante nessas perguntas neste intervalo de tempo, mas encontros frutíferos com outras mulheres plantaram em mim novas questões. Como eu voltei à caneta, não sei responder agora, mas é certo que eu estava com saudades.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: feminino, escrita, mulher, ato criativo, atividade
Imagem: “Hide and seek” (2020). Aquarela, carvão e grafite sobre tela. Andrea Miranda.
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