Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Algumas considerações sobre o feminicídio
Sandra Paraíso Sampaio (SPRPE)
“Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão.”
(Lee, Pagu, 2000)
Estamos, homens e mulheres, assustados e perplexos com a significativa presença de feminicídios na atualidade e, frequentemente, nos perguntamos: foi sempre assim? Os
Números? Aumentaram? Se sim, por quê?
Como contribuição a essa discussão candente, a direção científica da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPRPE) realizará em 18/5/2024, uma atividade online, intitulada “III Ciclo de Debate sobre ação afirmativa num diálogo com a psicanálise: o feminicídio”.
Diante desse tema, o primeiro aspecto a ser observado pela psicanálise é o fato desse crime ter sido qualificado e tipificado pelas mulheres. Nesse contexto de intensa dramaticidade psicossocial em que vivemos há algo peculiar à nossa época: as mulheres, ao legislarem e julgarem, passam também a ocupar o lugar de quem faz a lei nas sociedades. Assim, dividem com o pai o lugar da autoridade e da ordem. Isso pode significar que além do que Freud fez no começo da psicanálise – que creditou as falas, reais e imaginárias, das mulheres utilizando o método de associação livre na escuta de suas vozes – somos chamados, hoje, a reconhecer as novas vozes vindas das mulheres. Talvez, somos conclamados pela realidade a nos distanciar sempre mais de qualquer posição de controle, para nos agregarmos radicalmente a uma posição epistemológica de observação, investigação e diálogo com as mulheres, como aquelas que ocupam o lugar da lei, considerando que esse fenômeno as posicionam em um lugar múltiplo relacional, ou seja, de onde suas falas estabelecem relação com a vida psíquica dos indivíduos e com a vida da coletividade, portanto, com a vida dos sujeitos implicados com a ordenação da sociedade. Arriscamos dizer que há mudanças em curso em relação ao lugar que homens e mulheres ocupam na sociedade, os sujeitos, enquanto indivíduos, passam a dever obediência também às mulheres. Os esforços da psicanálise no sentido de compreender o sofrimento psíquico da destrutividade devem ir mais além do que abrir espaço para o diálogo com as mulheres nos consultórios e delegacias. Terão de alcançar, possivelmente, uma discussão política em que as mulheres se organizem em coletivos para questionar, no mesmo nível, as leis do pai.
Por esse caminho, precisamos primeiro esclarecer o que nós, psicanalistas, entendemos por patricarcado. Na Cultura Ocidental, desde a antiguidade, a mulher é colocada em uma posição social inferiorizada com relação ao homens.
Podemos considerar que sobre esse alicerce o patriarcado se ergueu como forma de organizar as sociedades e que, sob tal condição existencial, as mulheres estavam muito mais sujeitas a terem suas vidas violadas. Nessa posição de precariedade existencial, a mulher é objeto da submissão: deve ser escolhida, pois ao escolher fere o lugar de dominação daquele que exerce o poder e o controle sobre ela. Aqui não existe alternância entre ser sujeito e objeto de amor. Os papéis são definidos e definitivos.
Observemos, então, que o feminicídio está inserido nas dinâmicas de controle e poder do patriarcado. No Brasil, apenas em 2015 ele foi qualificado como crime. Vários são os tipos de violência que anunciam o feminicídio: psicológica, verbal, patrimonial, física etc. Trata-se de um crime paulatinamente anunciado! É um crime de ódio. A violência psicológica é a mais difícil de ser reconhecida, é uma estratégia de desvalorização que mina a autoestima e compromete a identidade, enquanto processo reducionista. Daí os agressores se apossam dos lugares capturados, infantilizando as mulheres.
O aporte freudiano propicia uma contribuição da psicanálise na compreensão do feminicídio ao ter a capacidade de se ocupar do sofrimento psíquico relacionado à destrutividade.
Quando a mulher não aceita ficar submetida, ela ameaça a ordem do dia. A luta é antiga e nos remete à sabedoria da cura, e aos primórdios da medicina, quando as mulheres tratavam as pessoas com ervas manuseadas e eram queimadas como bruxas. Nada mais do que uma estratégia destrutiva para transferir esse poder aos homens. São táticas de dominação que, quando falham, geram comportamentos violentos. O objetivo é destituir o lugar e tomar posse. Quando isso não é possível, o ódio destrutivo mata.
No feminicídio, o mito de Narciso é um importante aspecto, sobretudo porque reflete a paralisação na própria imagem, presente em frases como: “Você discordou de mim na frente de todos”.
É importante ressaltar o investimento libidinal e narcísico do amor dos pais. Este pode gerar recursos por toda a vida. Se não existe, pode gerar falhas identitárias que perpetuam déficits significativos e impeditivos para a alteridade.
Na película Pobres Criaturas (2023), dirigida por Yorgos Lanthimos, a autonomia do desejo feminino é abordada, libertando a mulher do patriarcado ou da herança transgeracional de um superego arcaico e, por isso mesmo, cruel. O filme apresenta a mulher em uma posição de observadora e investigadora de si mesma. No decorrer da história a personagem vivencia experiências até se apropriar de quem ela realmente é.
Hannah Arendt já nos alertava sobre os riscos de banalizar o mal, ou seja, não devemos banalizar violências que antecedem o crime de feminicídio. Portanto, convocamos homens e mulheres, numa força coletiva, para combater a violência contra as mulheres. Crimes devem ser punidos!
Crimes contra a mulher são uma presença constante na mídia, conforme indicam algumas manchetes e reportagens de violências que anunciam a banalização do feminicídio:
“Vereadora do PSOL, Marielle Franco é morta a tiros na Região Central do Rio”
“Mulher de 29 anos foi espancada até a morte em Lorena, SP. O corpo foi encontrado com várias fraturas e sinais de asfixia. O ex é suspeito do crime.”
“A justiça espanhola concedeu liberdade provisória a Daniel Alves, condenado por estupro, sob pagamento de fiança de um milhão de euros.”
“Robinho chega à penitenciária de Tremembé (SP) para cumprir pena de 9 anos de prisão por estupro. O STJ decidiu que ele deveria cumprir no Brasil pena pelo grave crime de estupro coletivo em uma boate. Muito embora essa cadeia seja conhecida como cadeia VIP, pois sua capacidade é para 584 e está ocupada por 484 (74%), muito diferente do nosso sistema prisional.”
“A Polícia Federal aponta nas investigações que a morte da vereadora Marielle Franco foi um crime idealizado pelos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão e “meticulosamente planejado” pelo delegado Rivaldo Barbosa, que assumiu o comando da Polícia Civil do Rio de Janeiro um dia antes do crime, em março de 2018.”
Os crimes acontecem quando essa mulher denuncia a castração que esse homem deposita nela, na tentativa de perpetuar sua fantasia fálica. Ao realizar o convite para que a mulher permaneça submetida, ele espera apenas que ela permaneça sustentando a questão falocêntrica. O ódio destrutivo atinge seu ápice quando a mulher ousa deixar esse convite levando o homem a romper com o pacto narcísico, devolvendo-lhe o lugar de castrado. Para ele o terror é ficar submetido à mulher, exacerbando fantasias e defesas paranoicas de que ela assumirá o fallus perdido, portanto, o ataque é uma espécie de legítima defesa, muito embora seja uma dessas defesas narcísicas.
É o auge do comportamento de arco-reflexo. Tudo leva a crer que esse homem é produto do desinvestimento dos pais, pois continua sendo apenas o duplo deles, uma vez que o processo de desidentificação implica em alteridade. Só suporta e respeita alteridade quem a tem. Discordar desse cenário provoca fissuras portadoras dessas más notícias.
Dessa forma, a luta é milenar e continua. “É preciso estar atento e forte”, já diziam Caetano e Gil, na voz suave da nossa saudados Gal Costa. Urge que homens e mulheres participem dessa luta coletiva contra o feminicídio!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: feminicídio, patriarcado, ódio, destrutividade, alteridade
Imagem: “Hide and seek” (2020). Aquarela, carvão e grafite sobre tela. Andrea Miranda.
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