Observatório Psicanalítico OP 478/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

As mulheres e a psicanálise

Cláudio Laks Eizirik – SPPA

Os recentes textos de Lina Schlacher, Gizela Turkiewicz e Kátia Barbosa Macedo no OP são potentes e profundas reflexões sobre a condição feminina e alguns dos maiores desafios e ameaças contemporâneas que ainda enfrentam para o exercício de uma plena cidadania e a posse integral de sua identidade e de seu corpo. Como costuma acontecer com contribuições dessa relevância, provocaram uma discussão viva e criativa. Marion Minerbo, inclusive, levantou a questão sobre a relação entre as mulheres e a psicanálise. Estimulado por nossa querida Beth Mori, arrisco algumas considerações sobre essa longa convivência.

Para isto, lanço mão inicialmente de um minucioso estudo histórico publicado em 1992 por Lisa Appignanesi e John Forrester sob o título “Freud’s Women“ (As Mulheres de Freud, Ed. Record). Os autores examinam a presença e a poderosa influência das mulheres na vida de Freud, em sua obra, na criação da psicanálise, nas suas análises de pacientes e amizades, e na questão da feminilidade.

Sem entrar em detalhes pessoais e diversas teorias ou especulações sobre sua vida privada, tanto nesse livro quanto em diversas biografias ou outros relatos revelam como, em todo o seu desenvolvimento, a presença de inúmeras mulheres de sua família e de seu convívio próximo constituíram estimulo e fonte de suas hipóteses teóricas, e foram uma permanente interlocução, inclusive referente a diferentes estados emocionais, tanto amorosos quanto de ódio, ciúmes e competição.

Nesse romance familiar, destacam-se sua mãe, Amalie, suas irmãs, sua esposa, Martha, sua cunhada, Minna, suas filhas, em especial Anna, Paula Fichtl, que trabalhava com a família por longos anos e foi com eles para Londres.

Na construção da psicanálise, diversas pacientes mulheres tiveram um papel decisivo na sua apreensão do inconsciente e da formulação da psicopatologia psicanalítica: Anna O. (Bertha Pappenheim), Cäcilie M., Emmy Von N., Katharina, Elisabeth Von R., Lucy R., Emma E., Dora, para citar algumas delas.

Mais adiante, um número significativo das pacientes mulheres de Freud tornaram-se analistas: Emma Eckstein, Sabina Spielrein, Lou Andreas Salomé, Helene Deutsch, Joan Riviere, Jeanne Lampl de Groot, Ruth Mack Brunswick, a princesa Marie Bonaparte, Eva Rosenfeld e a própria Anna Freud.

Todas essas mulheres realizaram importantes contribuições para a teoria, a técnica, as traduções, a criação de instituições psicanalíticas. Com algumas delas, Freud desenvolveu uma longa e profunda relação de amizade, e mútua influência, tanto nos aspectos clínicos como teóricos de suas práticas analíticas, em especial Marie Bonaparte, Lou Andreas Salomé e sua filha Anna.

Segundo esses e outros autores, nos últimos dez anos de sua vida, suas principais amizades foram com mulheres. Além das pessoas citadas, Freud manteve uma relação muito afetuosa com Hilda Doolittle, poeta e escritora americana, que havia sido sua paciente e que escreveu um belo livro sobre essa experiência, Tributo a Freud (1944), dez anos após a terminação de sua análise.

Em um trabalho recente, Zimerman Bizzi (2022) examinou as contribuições de três mulheres pioneiras da psicanálise, Sabina Spielrein, Helene Deutsh e Karen Horney, mostrando como suas ideias inovadoras sobre a psicanálise como um campo subjetivo e intersubjetivo sofreram ostracismo histórico e os efeitos da misoginia, tendo seu reconhecimento devido ocorrido apenas em anos mais recentes.

Os desenvolvimentos posteriores da psicanálise não teriam sido possíveis sem a presença forte, criativa e carismática de muitas mulheres, que não só levaram adiante as ideias freudianas, como as transformaram, modificaram, ampliaram e abriram novos horizontes e perspectivas, inclusive sobre a compreensão da feminilidade, da sexualidade feminina, de sua subjetivação – aquele território aparentemente tão difícil de entender nos primeiros tempos, que levava a simplificações e fórmulas tão influenciadas pela cultura da época, por um inevitável machismo e patriarcado, e que continua, em graus variados, presente e ameaçador nos dias atuais, como os três trabalhos citados no início bem demonstram.

No período posterior a Freud, a presença pujante e inovadora de Melanie Klein criou um novo paradigma para a psicanálise, influenciando as ideias de Bion, Winnicott e Meltzer, ao lado das contribuições de Paula Heimann, Hanna Segal, Betty Joseph, Joan Riviere, Susan Isaacs, Elizabeth Spillius, Edna O´Shaughnessy na tradição psicanalítica inglesa. Dentro dessa mesma cultura psicanalítica, as ideias de Freud foram desenvolvidas por Pearl King, Anne-Marie Sandler e a brasileira Rosine Perelberg. Esther Bick criou um método de observação de bebês amplamente utilizado.

A psicanálise francesa contou e conta com contribuições relevantes de inúmeras psicanalistas, como Françoise Dolto, Janine Chasseguet-Smirgel, Joyce McDougall, Haydée Faimberg, Marilia Aisenstein, Elizabeth Roudinesco, Piera Aulagnier, Julia Kristeva, Maud Mannoni.

Desenvolvimentos inovadores também foram observados na América do Norte, com Elizabeth Zetzel, Phyllis Grenacre, Margareth Mahler, Frieda Fromm-Reichmann, Karen Horney,Edith Jacobson, Ethel Person, Nancy Chodorow.

A psicanálise latino-americana, uma das mais inovadoras e influentes, inclui relevantes e transformadoras contribuições de inúmeras psicanalistas, passadas e presentes: Arminda Aberastury, Marie Langer, Madeleine Baranger, Betty Garma, Luisa de Urtubey, Yolanda Gampel, Janine Puget, Leticia Glocer Fiorini, Mariam Alizade, Adelheid Koch, Virginia Bicudo, Marialzira Perestrello.

Esta relação de mulheres analistas, devo dizer, decorre de minha própria avaliação e capacidade de apreensão. Certamente muitas outras colegas poderiam ou devem ser incluídas.

Do ponto de vista institucional, chama a atenção uma notável diferença entre o protagonismo nas administrações das sociedades psicanalíticas e das federações regionais, de psicanalistas mulheres em cargos diretivos, e o que ocorreu com a IPA, que apenas em 2017 elegeu como presidente nossa querida Virginia Ungar, com uma impecável carreira como autora, clínica e líder institucional. Em 2021, foi eleita outra psicanalista mulher para a presidência, a norte-americana Harriet Wolfe.

Até então inúmeras mulheres analistas haviam ocupado cargos de secretária geral ou vice presidente, em administrações que tinham um homem como presidente, como foi o meu caso, que tive a sorte e a alegria de constituir uma dupla afinada e estimulante com minha saudosa amiga Monica Siedmann de Armesto. Virginia e o nosso Sérgio Nick constituíram igualmente uma dupla afinada e criativa.

As razões para esse fato são complexas, mas suponho que tenham relação com as várias dificuldades enfrentadas pelas mulheres ao longo da história, para terem seu papel, relevância, capacidade e pleno conhecimento reconhecidos para o desempenho de quaisquer atividades que desejem.

Curiosamente (ou não), Virginia, Harriet e eu tivemos a oportunidade de discutir este tema numa mesa redonda do congresso da IPA em Londres, em 2019, e nossas observações coincidiram em torno desta hipótese que acabei de mencionar.

Duas relevantes contribuições para a psicanálise, em anos recentes, foram a criação da COWAP, pela IPA, e do OP, pela FEBRAPSI. Em ambas, se observa uma maciça presença e contribuições criativas de mulheres psicanalistas.

A história da psicanálise, até aqui e cada vez mais, tem demonstrado como a presença feminina é não só indispensável, como essencial para todos os campos de atividade.

Mas como disse Freud em sua única entrevista gravada: “The struggle is not over” (“A luta não acabou”)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade; Instituições Psicanalíticas

Palavras-chave: Mulheres e Psicanálise, Freud e as Mulheres, Mulheres destacadas na psicanálise.

Imagem: Parte da Capa do livro “As mulheres de Freud”, Lisa Appignanesi e John Forrester, editora Record

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Tags: Freud e as Mulheres | Mulheres destacadas na psicanálise | Mulheres e Psicanálise
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