Observatório Psicanalítico OP 474/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

RACISMO À BRASILEIRA – Mais do mesmo em Porto Alegre/fevereiro 2024

Autores: Comissão Ubuntu da SBPdePA

Beatriz Saldini Behs, Camila Reinert, Eliane Grass Ferreira Nogueira, Ignácio Alves Paim Filho, Luciana Saraiva Schmal, Sandra Maria Sales Fagundes, Vera Elisabethe Hartmann, Ane Marlise Port Rodrigues  (Coordenadora)

Ynaê Lopes dos Santos, historiadora e escritora, no Portal Geledés, diz que a perfeição do racismo brasileiro transforma algoz em vítima. Descreve que na tentativa de esfaqueamento em Porto Alegre, quando chega a polícia, de um lado está um motoboy negro; de outro, um homem branco. Quem deveria ir preso? Para a historiadora, a resposta está dada há séculos. Acrescenta a famosa frase de Kabengele Munanga quando descreve a estrutura racial e racista no Brasil como um crime perfeito. O homem branco usou da faca, mas o preso foi o motoboy negro. As práticas racistas, além de não serem suficientemente reconhecidas, são naturalizadas. Parece óbvio que o culpado é o negro, em geral pobre. No crime perfeito, o algoz é transformado em vítima e a vítima em algoz. O idoso branco, morador do edifício em frente ao qual se deu o ocorrido, já vinha bastante incomodado com o agrupamento de motoboys por ali, aguardando chamadas de clientes. 

Podemos entrar um pouco na questão da arquitetura urbana e a ocupação dos espaços públicos. A arquitetura chamada hostil visa impedir determinadas ocupações de espaços públicos nas cidades. Não havia nenhuma sinalização de que os motoboys não pudessem estar naquele local. De qualquer maneira, não foi possível para as partes envolvidas conversar a respeito. Conversar, inclusive chamar terceiros se necessário, seria um grande avanço na percepção de que todos temos direito de habitar o espaço público e temos de achar alternativas quando nos indispomos.

Outra questão simultânea nas mídias de Porto Alegre: muitos casos de feminicídio pelo RS, incluindo a capital. Quanto mais as mulheres conseguem enfrentar o medo, a submissão às agressões físicas e morais do homem, rompendo a relação, mais tentam matá-las. Felizmente, as denúncias aos agressores e busca de ajuda e apoio jurídico seguem crescendo. É com muita tristeza e revolta que vemos tantos casos de racismo e feminicídio diariamente nas notícias pelo Brasil afora.

Na situação do motoboy, tivemos uma mobilização rápida em sua defesa. Testemunhas falaram com os dois policiais, foram feitos registros, divulgação nas mídias, alguns foram ao Palácio da Polícia protestar e o governador do Estado se pronunciou no sentido de apurar o crime de racismo.

Sabemos que atos racistas se repetem todo tempo pelo Brasil, com faca, revólver, taco, joelho que asfixia. O que estiver mais à mão para expressar o repúdio e ódio àquela pessoa que, ao ver da pessoa branca, não deveria estar ali, ocupando aquele lugar ou espaço. O motoboy (ou a empregada doméstica) deve ser útil, prestar seu serviço, mas ser de preferência invisível ou volátil.

E temos a validação do ato racista pela própria polícia quando toma como primeiro culpado o motoboy e deixa livre o homem branco. Nenhuma surpresa aí. Só depois de serem contestados, se dirigem ao idoso, o acompanham até seu apartamento para que vista uma camisa e a faca é deixada na casa. A percepção dos policiais é de que não agiram de forma racista pois prenderam o motoboy por estar alterado e agressivo (Jornal Zero Hora, 21/02/24, p.22).

Como brancos, estamos muito desconectados da realidade cotidiana de humilhação racial vivida pela população negra no Brasil. Quanto mais retinta a pessoa negra, mais exposta a essa violência. O colorismo é uma faceta complexa do racismo brasileiro.

Num país continental como o Brasil, o racismo, que é um fato trágico nacional, se apresenta com particularidades regionais.

Temos um discurso sulista de superioridade devido a origens europeias, o que já levou e ainda leva alguns grupos a ideais separatistas visando formar outro país.

O aumento expressivo de células neonazistas em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul tem ligação com a ideologia da supremacia branca de extrema-direita. Na região Sul, temos 11,8 células neonazistas por milhão de habitantes, sendo que no Sudeste cai para 1,9 por milhão de habitantes (dados de reportagem de Edison Veiga, veiculado no Instituto Humanitas Unisinos/RS, 2020).

Estamos frente a situações altamente complexas que não têm respostas fáceis, que requerem aumento da consciência sobre essas questões, mais conhecimento e estudo (sair da ignorância) e não cair em maniqueísmos tipo superior/inferior, bom/mau, bem/mal, puro/impuro e tantas outras simplificações por trás das quais se esconde o que temos de mais nefasto e violento. A letalidade de nossa pulsão de morte associada com interesses políticos/econômicos de governos pautados pela necropolítica cria um caldo de cultura assustador.

No entanto, os avanços vêm acontecendo e requerem cada vez mais a união de forças não só dos que sofrem essas terríveis violências, mas dos brancos brasileiros e dos que sendo testemunhas de atos racistas não podem mais fazer de conta que nada viram ou nada perceberam.

Que possamos cada vez mais sair da conivência com o racismo e do cinismo e negação no enfrentamento.

O texto da comissão Ubuntu foi enviado ao OP no dia 23 de fevereiro, dias após o incidente ocorrido em Porto Alegre.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Vidas Negras Importam 

Palavras chave: Racismo, preconceitos, violência, branquitude, polícia.

Imagem: jornal Correio do Povo – 19/02/2024

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Tags: branquitude | polícia | preconceitos | Racismo | violência
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