Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Entre o torresmo e a moela
Daniel Senos (SBPRJ)
Existem várias formas de nos relacionarmos com um local, uma cidade, um país: enquanto turistas, nativos, estudantes, expatriados, dentre outros.
Sobre o Rio de Janeiro, falo como carioca e, especialmente, sobre a profunda relação de amor e ódio que cultivo com a cidade, que é um verdadeiro espetáculo visual, mas guarda em seu âmago a segregação e o aparelhamento do poder público com as facções criminosas. Nossos monumentos naturais, celebrados pelos turistas, contrastam com as inúmeras favelas espalhadas pela cidade, habitadas por pessoas que não possuem o mínimo necessário para viver, como saneamento básico, alimentação e segurança. Em um movimento crescente, não apenas no Rio, vemos o aumento exponencial de manifestações abertamente racistas e preconceituosas lideradas por figuras públicas que têm interesse em promover o ódio contra toda a parcela da população que se encontra à margem do discurso normativo corrente. Além disso, em meio às movimentadas praias de Ipanema e Leblon, cenário de novela da Globo e das aristocráticas caminhadas de inúmeras Helenas, nos surpreendemos com a promoção, advinda dos mais abastados e supostamente mais instruídos, de purificação das areias da Zona Sul, cobrando pujança e violência contra a caravana, como descreveu Chico Buarque, dos periféricos, suburbanos, pretos e pobres “Tem que bater, tem que matar/Engrossa a gritaria/Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”.
Em meio à tensão diária que envolve o cotidiano carioca, o carnaval se impõe pelas ruas no início de cada ano. Fanfarras desconexas e batuques descoordenados, seguidos de apitos e repetição de motivos musicais típicos marcam o início do ano no Rio de Janeiro com os ensaios dos blocos de rua. Corpos seminus banhados em purpurina, fantasias diversas replicando eventos recentes do nosso contexto sociocultural invadem as ruas da cidade. São os blocos de carnaval ensaiando para um dos períodos mais esperados pelos cariocas, que anseiam pela festividade e pelas aventuras que ela proporciona aos participantes.
Atraímos para a cidade uma grande massa de turistas, ávidos pelo cortejo que, supostamente, estabeleceria um convívio harmônico entre as diferenças entre gênero, raça, credo e afins. Ao mesmo tempo, a mesma parcela que se impõe de forma inquisitória contra a presença dos indesejáveis favelados em territórios nobres da cidade também armam sua cruzada a favor dos bons costumes, aliando-se aos discursos fundamentalistas ao reduzir o carnaval como um festejo que visa a alienação e promove a depravação, farra pública e pagã personificada nos blocos de rua e nos desfiles das escolas de samba.
Dentro do contexto carioca é possível entender que, para além da celebração do corpo e da festividade em si, o carnaval, além de desafiar as faces do moralismo e da normatividade, precisa ser compreendido de forma complexa. Trata-se de uma festa que escancara a alteridade, dentro de uma atmosfera de celebração plural, a partir do encontro com o outro, e que abre espaço para a criação de um sentido coletivo de vida, como diz o historiador Luiz Antonio Simas. Logo, o carnaval não seria um momento de apaziguamento ou de alienação tola dos acontecimentos sociais, mas sim uma forma de trazer as tensões que permeiam o cotidiano para o centro do debate, uma vez que impõe a intensa convivência com a alteridade. Talvez ainda distante de um ideal democrático, o carnaval se manifesta enquanto palco de um imenso coletivo composto por partes que, habitualmente, não se comunicam entre si, mas que diante do chamamento de tal celebração são confrontados ao convívio.
Ainda em terras cariocas temos um outro aspecto relevante em nosso carnaval, no contexto das escolas de samba, que é a convivência aberta com o poder paralelo, muitas vezes misturando a história familiar dos bicheiros com a própria trajetória da escola. A importância das escolas de samba enquanto agentes socioculturais é inegável, porém remete, a todo carioca que tenha algum interesse pelo carnaval, à história da contravenção e à grande máquina que seus representantes movimentam em diversas esferas, não apenas das escolas de samba, mas também do poder público, como nos apresenta de forma instigante a série documental “Vale o escrito – A guerra do jogo do bicho”. No entanto, figuras como Candeia, Manacéia, Monarco, Cartola, Nelson Sargento, Tia Surica dentre muitos outros compõem um dos maiores tesouros que possuímos, impactando várias gerações de artistas e, principalmente, celebrando a cultura de rua, outrora vista como marginal. Candeia reivindicava literalmente o saber construído nas escolas em seu samba “Dia de graça”:
E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias
E cante o samba na universidade
E verás que seu filho será príncipe de verdade
Aí então jamais tu voltarás ao barracão
Por fim, retomo ainda os blocos de carnaval, “bloquinhos”, para os que gostam de frequentá-los, mas que ao longo das décadas passaram por um processo interessante e facilmente constatável de esvaziamento de suas raízes. É possível hoje em dia encontrar blocos que tocam, muitas vezes de forma louvável, desde músicas bregas, Beatles em ritmo de samba, até música de videogame e eletrônica. Mais uma vez somos confrontados com a tensão própria às ruas, uma vez que, enquanto festa da ancestralidade, poderíamos facilmente taxar os blocos atuais como manifestações profanas, de forma anacrônica. No entanto, também é importante compreender o dinamismo presente nas relações dialéticas que se estabelecem entre o eu e o outro e que não são estáticas temporalmente, sendo atravessadas por fenômenos culturais próprios de cada tempo. “O ancestral é algo que atravessa o tempo e sempre será contemporâneo, sempre falará com o presente. Portanto, é importante que o carnaval tenha a capacidade de conciliar o novo e o tradicional, pois é isso que lhe dá potência como festa” (Simas, 2023).
Em meio às peripécias carnavalescas e fanfarras cada vez mais próximas, encerro esse ensaio retomando minha própria relação com a cidade, permeada por surtos de amor e rompantes de ódio, o que me faz comungar do carnaval apesar de ser um péssimo folião, comungo da tensão que é ser estranhamente levado pelo cortejo. Prefiro sambar entre o torresmo e a moela, como diria o saudoso Aldir Blanc, viver entre o cavaco e o violão, apesar de todas as contradições que tensionam essa grande e conflituosa festa que é o carnaval carioca, que, mais uma vez, se impõe e desvela as dores e alegrias de ser, por mero acidente, carioca.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura; Política e sociedade
Palavras-chave: Carnaval, escola de samba, cultura, samba, Rio de Janeiro
Imagem: Laerte
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