Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A torre, o fracasso
Daniel Delouya – SBPSP
Não é o mar que está entre nós
Não é o abismo que está entre nós
Não é o tempo que está entre nós
É nós dois, aquilo está entre nós.
(Goldberg, L. Poemas Recolhidos)
Conta-se sobre um parisiense que odiava a Torre Eiffel e, no entanto, passava o dia na torre desde A sua abertura para os visitantes. Quando questionado, respondeu: “o único lugar onde não se pode ver a torre é estando dentro dela”.
Bela parábola, penso eu, nesse estado de alienação a que a vida cívica nos submete ao passar pelo semáforo ocupado por mães e crianças pedintes, ou de manhã, caminhando em direção à padaria ou aos nossos consultórios, atravessando as calçadas onde seres humanos indigentes, sem teto e sem nada, ainda dormem envolvidos por seus farrapos.
Assim, passamos à ordem do dia rodeados pelas questões sociais da cidade: machismo, homofobia, racismo, assassinatos gratuitos de indígenas, negros, transsexuais, entre outras injustiças sociais e mundiais, terrorismo de grupos ou de Estados e suas guerras e golpes, acrescidas às ameaças do desmantelamento climático, de guerras nucleares, da ditadura digital, entre outras desgraças que nos aguardam e assombram as próximas gerações.
Tudo isso ainda mais acentuado pela nossa navegação, esse surfar deslizante nas redes, onde, em fração de segundos ou minutos, averiguamos nossas contas bancárias, as notícias do tempo e as mazelas diárias do mundo, adquirimos produtos, encomendamos serviços etc. Como se essas faixas de luz de nossas identidades de cidadãos bem abastados, de classe média, pudessem nos poupar, servir de refúgio da escuridão de nossas dores, do desamparo de nossas existências e seus corolários; pavores, medos, raivas, indignação diante daquilo que ocorre aos outros marginalizados, para fugirmos das próprias bordas das ameaças que estão prestes a se abater sobre nós.
Basta uma morte repentina de alguém próximo, uma doença fatal ou a perda de um ente querido ou de seus bens para nos devolver às sombras das ameaças do nosso desamparo de origem. Transportados para essa torre de luz, em sua transparência lúcida de desempenho suave das tarefas cotidianas, alguns de nós se posicionam ou militam, ainda, pela justiça com a mesma veemência, por vezes, da violência que atinge as vítimas da vida contemporânea.
Apontam os feitos dos responsáveis, os da direita nefasta e de seus dirigentes fanáticos, com seus interesses egoístas, mal-intencionados. E nos sugerem que nos engajemos em um novo letramento para nos livrarmos e não nos subjugaremos ao vocabulário colonial, preconceituoso, que habita a nossa língua.
Não raro, esse tipo de higienização da mente, em que os acontecimentos relatados na imprensa servem de suporte para uma evacuação projetiva do mal, e o patrulhamento vigilante para arejarmos essa área com produtos linguísticos bem cheirosos de expressões politicamente corretas, denunciam a compulsão à repetição das defesas de seus militantes. Freud já havia mostrado que uma preocupação excessiva de uma mãe com o bem de seus filhos é uma reação ao ódio que ela nutre em relação ao seu nascimento e existência.
Lembro-me de uma percepção de um paciente que ficou surpreso com a mudança da posição política de sua esposa quando ela passou a ser militante feminista, antirracista, denunciando os malfeitos em relação ao povo indígena e suas terras, etc. Por outro lado, ela se recusava a aumentar os salários de suas funcionárias, mantinha em suspenso o aviso de sua liberação nas vésperas de suas viagens em feriados, cultivava um repúdio às suas pacientes judias, recusava-se a passear em certos parques e restaurantes devido à presença daqueles que os frequentavam (negros). Além disso, contava com carteira registrada e salário desde seus 17 anos de idade na fazenda de sua família, onde nunca trabalhou, e onde os colonos de gerações não foram registrados até o momento que não dava mais.
Hipocrisias? Sim, certamente, talvez sendo elas as expressões mais agudas dos paradoxos inscritos em nossa vida em civilização, onde o desamparo ergue identificações disponíveis de sobrevivência mediante a lógica de domínio que rege a cultura. Obra da pulsão de morte, como disse Freud? Sim, mas não apenas! Principalmente não! A pulsão de morte trabalha pela vida, desde que a linguagem se ouse, se proponha para tanto. Ou seja, a questão, o problema, somos nós!
Um livro, recentemente traduzido para o português, “O Despertar de Tudo”, com um subtítulo aparentemente pretensioso, “A História da Humanidade”, escrito por um antropólogo, David Graeber, e um arqueólogo, David Wengrow, nos mostra que a vida em sociedade poderia ser muito diferente. Num livro bem documentado, com extensos exemplos da história dos povos pelo mundo, eles mostram como os povos originários conviviam em comunidades igualitárias com provisões culturais significativas das mulheres e com liberdade sexual e cultural impressionante. Os bens e invenções tecnológicos eram utilizados não em favor do poder e do domínio, mas em prol do bem comunitário, numa espécie de sociedades anarquistas onde havia liberdade de troca e a possibilidade de desobediência e de abandono de uma comunidade para o estabelecimento de outras. Eles perguntam: como ocorreu esse desvio para esse ocidente tóxico? “How we got stucked?” Como acabamos sendo presos, tolhidos?
Em termos freudianos, nos seus mitos: como mal toleramos o assassinato do pai todo-poderoso da história, o seu luto, e, em vez de contar com o novo laço social, da área transicional, inventiva (Winnicott) e de troca, imergimos em uma estrutura social defensiva, mortífera, de domínio, de exploração, de colonização, fundada sobre o medo? Como revertemos essa perspectiva (Bion) em vez de aceitar o desconhecido e contar com a linguagem; em vez disso, ai de nós, recorremos ao poder, nutrido pelo desamparo?
Nessas férias de verão, me despedi do ano com dor, que imagino ser compartilhada por muitos, mas com a qual tenho ligações pessoais e étnicas: a guerra em Israel, os massacres na fronteira de Gaza e em Gaza. Numa visita que fiz no início do ano passado à minha mãe, que reside nos últimos anos perto da faixa de Gaza, encontrei um primo que não via há mais de 35 anos. Ele, marxista na juventude em Marrocos, alistou-se e emigrou sozinho para Israel com 18 anos, no final dos anos 60. Com amargor, ele confessava agora, pour moi, Israel c´est un échec (para mim, “Israel é um fracasso, uma falha”).
Neste verão, evitei visitar tão cedo meus parentes, diante dos acontecimentos do recente 7 de outubro. Dizia a mim mesmo algo absurdo: preferia não ser judeu, como outro dia uma amiga querida confessava que pedia, quando criança, para a mãe não ser judia. Só encontrei consolo da agonia na leitura de livros de literatura que desejo aqui recomendar. A questão é como um convívio fértil, amigável, de séculos entre judeus e árabes palestinos, cristãos e muçulmanos, se tornou, a partir dos anos 1920 e até hoje, uma sucessão de massacres mútuos, grupais e do Estado.
Recomendo o livro “Judas” (2014), tardio, de Amos Oz, que voltei a ler após anos. Nada me é mais próximo no convívio social do que a atmosfera, os cheiros e o afago emocional do clima árabe mediterrâneo. Lembro da hospitalidade dos fins de tarde com colegas palestinos na Universidade de Jerusalém, onde eu era frequentemente convidado a lanchar na sua companhia, e um deles me dizia: “um dia teremos o verdadeiro confronto, ou vocês ou nós, mas, enquanto isso demorar, venha, meu querido (Habibi), sente e vamos comer e beber, vamos nos divertir um pouco”.
As raízes desses sentimentos tão próximos remontam à minha infância em Marrakech, na companhia de árabes com quem convivi. Os laços sociais são embrenhados nas dores de amores entre judeus e árabes nos quais se enlaçam todos os conflitos entre esses “primos” tão próximos.
Um livro recente, traduzido em inglês como “Borderline” (2014), de Dorit Rabinyan, israelense de origem persa, e que eu preferiria traduzir literalmente como “Cerca Viva”, retrata o amor entre uma israelense, aluna de doutorado, e um artista plástico palestino em Nova York. Outro belíssimo romance, “Jasmine” (2009), de um israelense, Eli Amir, nascido e criado no Iraque, narra o fim da desgraçada guerra de 1967 em Jerusalém, onde um amor entre um funcionário israelense, de origem iraquiana, se desenrola com uma palestina, e ambos, com dor de reconhecimento, enfrentam o impasse para o estabelecimento de uma vida juntos. Fora o livro de Oz que se encontra em português, os dois últimos romances citados são traduzidos em várias línguas, inclusive em espanhol. Ambos retratam o impasse entre uma cultura árabe que preza a dignidade, vinculada à vergonha, à humilhação, e, de outro lado, a cultura europeia de domínio, ideológica, de superação, orgulho e, portanto, de desrespeito e alienação àquilo que poderia culminar numa vida de troca frutífera. O livro de Rabinyan dá esperança, os de Oz e de Amir, bem menos!
Em qual lado fico? Fico entre!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: luz, falha, fracasso, civilização.
Imagem: Torre – carta de Tarot
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