Observatório Psicanalítico – OP 453/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Gazeta do Amanhã

Adriana Augusta – SPFOR

“Homo homini lupus”

“Quem, depois de tudo que aprendeu com a vida e com a história, tem coragem de discutir essa frase?” (Freud)

“Lupus est homo homini lupus” é uma citação criada pelo dramaturgo romano Plauto (254 a.C.), popularizada por Thomas Hobbes (século XVII) e mencionada por Freud (em 1930). Essa expressão pode resumir as palavras de Freud quando ele diz “…para o homem, o próximo é uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho…, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para inflingir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo”.

Freud nos diz que o ser humano traz consigo uma potência de destruição. Reconhecer essa destrutividade inata, onipresente e autônoma é constatar o quão difícil é ser civilizado, estado em que o próprio homem é o obstáculo a si mesmo, ou à civilização. Machado de Assis entrou em minha vida muito antes de Freud e não leio o “Mal-estar na civilização”, sem que me ocorra Quincas Borba. “Humanitismo” era a filosofia de Quincas Borba que dizia a guerra ser necessária, cabendo “ao vencido, o ódio ou compaixão e ao vencedor, as batatas”. Para os mais fracos, como uma seleção natural, restaria o extermínio e para os ingênuos, a loucura. Em Quincas Borba, o homem (1), para satisfazer seus interesses, mostra-se “animal demais”, sem pudor em aniquilar o outro. Tornar-se-ia o homem “desumano” por ter essa sua natureza “animal” levada ao extremo ou, ao contrário, por ser “demasiado” humano? Para complicar mais, no livro, Quincas também é o nome do cão, um animal, que é o único sempre fiel, solidário e amoroso.

Em 9 de outubro, o Ministro da Defesa de Israel, sem disfarces ou discrição, tomado de “desumanidade”, chamou publicamente os palestinos de “animais-humanos” e justificou o genocídio (2). Seguindo a mesma retórica do extermínio, o Ministro do Patrimônio de Israel falou em “arrasar Gaza e matar todos”, pois, segundo ele, “não há inocentes em Gaza” (3). Valho-me aqui de Aristóteles (384 a.C.) para contestá-lo. Todas as crianças do mundo são inocentes e devem ser protegidas. Em Gaza há crianças. Logo, as crianças de Gaza são inocentes e devem ser protegidas. Porém, já são milhares de vidas destruídas, afirmando o presidente do Brasil que a quantidade de crianças e mulheres mortas em Gaza não tem precedentes (4): “Israel joga bombas onde tem crianças, onde tem hospital e mata inocentes sem nenhum critério. Não tem explicação”.

“Humanidade”, pelo Houaiss, diz respeito ao “conjunto de seres humanos” e ao “sentimento de bondade, benevolência em relação aos semelhantes ou de compaixão; piedade em relação aos desfavorecidos”. Humanidade tem a ver com civilidade e instrução, porém a grande questão atual parece caber na citação: “Ser ou não ser – humano – eis questão”.

Como psicanalistas, sabemos que se a cria humana não for amparada, não sobreviverá. Segundo Freud, construímos nosso aparelho psíquico “pari passu” ao investimento recebido do outro. Só nos lançamos na vida, como “humanos”, pelas mãos do outro, ligando a pulsão de morte e encarnando a vontade de viver. É necessário leite, amor e, às vezes, incubadoras e oxigênio extra: a cria humana nasce mamífera, mas ela se constitui “humana” junto com o outro. E quando o outro, que deveria proteger as crianças, oferece apenas morte? Como as crianças de Gaza se tornam “humanas” considerando todas as privações, ameaças e humilhações que vêm sofrendo há décadas? No presente, toda essa agonia foi agudizada por bombas ininterruptas a destruir todo o mundo conhecido por essas crianças. Os recém-nascidos no berçário trazem em suas identificações: “RN com pais mortos”. O desamparo em que essas crianças se encontram e a repercussão em seus corpos e mentes (as que sobreviverem, se sobreviverem, é claro) são bem conhecidos pelos psicanalistas. Está ocorrendo um processo de desumanização atroz, provocada por uma máquina de guerra insana que não respeita nem a vida de bebês em incubadoras, tampouco a própria instituição que “incubou” o Estado de Israel, a ONU. Desamparadas estão as crianças e perdidos estamos nós enquanto “civilização”, pois a ONU, quando não mais conveio ao Estado de Israel e aos EUA, foi ignorada e afrontada. Já não se cumprem as leis ou acordos internacionais, fala-se em ir até o fim no extermínio e ameaça-se jogar bomba atômica (5) em Gaza. Não há limites. “Apocalypse Now”?

Francis Ford Coppola se baseou no livro de Joseph Conrad para criar sua obra-prima, com a história deslocada do Congo para a guerra do Vietnã. Esta guerra foi marcada pela fotografia de uma menina nua, com os braços estendidos, gritando de dor: o napalm colado na pele. Nenhuma foto daquele período foi mais forte do que essa: a foto de uma criança. Gaza é o coração das trevas do nosso tempo e o próprio “horror, o horror”. “Se uma imagem vale mais que mil palavras”, segundo Confúcio (552 a.C.) me pergunto qual o significado de uma criança morta em uma guerra. E de milhares? Caminha para 6 mil o número de crianças mortas em Gaza, fora as feridas e as que estão sob os escombros. São tantas que viraram números, parece até que não têm nomes! Há mais de 60 dias temos visto diariamente, na televisão e outras mídias, pacotes brancos nas ruas destruídas de Gaza. São crianças mortas. Crianças mortas! Mortas… A ninfa Eco não para de insistir quando não há mais palavras. Crianças são assassinadas após bombardeios de lugares “seguros” como suas casas, escolas, hospitais, ambulâncias e campos de refugiados. Susan Sontag disse que “as guerras são também imagens e sons na sala de estar”. Todos os dias temos visto crianças agonizando, ensanguentadas, queimadas, soterradas, calcinadas, amputadas por explosões. Restos de crianças são recolhidos pelos pais: são pedaços de pernas, fígado e cérebro colocados sobre um lenço. Crianças, no chão de hospital, sendo operadas sem anestésico. Crianças nascendo por cesariana a sangue-frio. Crianças mortas ou feridas nos braços de pais ou mães correndo sobre escombros rumo a hospitais que não existem mais. Os hospitais são necrotérios e dezenas de médicos foram mortos. Não há mais sedativos, lenitivos ou morfina.

Susan Sontag também afirmou que “a compreensão da guerra, entre pessoas que não vivenciaram uma, é, sobretudo, um produto do impacto das imagens”. Estamos realmente vendo? Podemos mesmo sentir? Como pedir “humanidade” e “compaixão” em meio ao caos gerado pela pulsão de morte? Como não nos compadecermos dessas crianças que não têm mais água, comida, banheiro, pais e estão feridas? Estamos anestesiados? Houve crianças israelenses que morreram, uma tragédia, mas, vamos além: as crianças israelenses também são atingidas a cada bombardeio sofrido pelas palestinas, também são afetadas com o colonialismo imposto, com a política de apartheid, pois deixam de ser e estar no mundo como crianças. Os pequenos palestinos não podem andar nas mesmas estradas e nem frequentar os mesmos estabelecimentos que os israelenses. O que isso gera no campo psíquico para ambos? É aterrador ver as imagens de um coro de crianças israelenses cantando uma música (6) cuja letra exalta o extermínio dos palestinos e a destruição completa de Gaza. O ódio é doutrina (7) e as crianças aprendem que há seres humanos superiores e inferiores. Enquanto isso, os bombardeios continuam, a crise humanitária se agrava e há crianças sequestradas (por ambas as partes) que sofrem (8).

Percebemos como é difícil nos mantermos no salto alto da civilização por termos constitucionalmente um potencial destrutivo, porém torna-se uma tarefa impossível quando se acrescenta a isso o “ódio” ensinado em escolas. Mandela disse que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” Será? O governo extremista de Israel (não incluo o povo judeu!) está matando a alma de suas próprias crianças. Elas presenciam o terror, direta ou indiretamente, gerando traumas permeados com desmentidos, serviço militar obrigatório e cria-se um estado paranóico em que o inimigo necessariamente tem de ser destruído. Quando estarão seguras? Isso vale para o mundo externo e para o mundo interno. Ressalto e louvo aqui as corajosas manifestações dos judeus, em várias partes do mundo, contra esse morticínio.

“Esta é uma guerra contra as crianças” (9) disse o porta-voz do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) durante uma visita ao maior hospital de Gaza, completando com ser “inaceitável o estado de terror e trauma das crianças”. O lugar estava superlotado de crianças com ferimentos graves. Por quê? Por que a sanha israelense em destruir Gaza? A resposta descomunal de Israel (aliado incondicional dos EUA) ao ataque sofrido não parece ser só legítima defesa. Seria um misto de vingança e vergonha por “animais-humanos” terem driblado o mais preparado estado bélico do planeta, aliado a um premeditado projeto de limpeza étnica e expansão territorial?

Com o tempo, a palavra “terrorismo” vai tomando outros contornos (10), a semântica muda; o maniqueísmo da mídia hegemônica é confrontado, as narrativas ficam mais complexas e outras verdades vão sendo colocadas ao se contextualizar historicamente a situação. Há, inclusive, investigações em curso de que haveria mortes israelenses, em 7 de outubro, causadas pelo próprio exército de Israel (11). Aniquilar o inimigo, mesmo à custa de civis mortos, é justificável? O desenlace dessa guerra assimétrica é uma catástrofe para todos. Não haverá vencedores, fracassou a humanidade e as crianças têm pressa.

Quando começaram os bombardeios, ouvi uma passagem no rádio de um pai brasileiro em Gaza. Agindo como se “a vida fosse bela”, ele dissera a seus filhos serem, o que ouviam, fogos de artifício de uma festa. Falou isso por um, dois, três dias… porém uma de suas filhas perguntou que festa estranha era aquela que não acabava. Ele não tinha palavras. Também não tinha mais comida, água e abrigo. Para onde iria levar as crianças? Para onde? Ah… o povo sumiu… a luz apagou… a festa acabou. E agora? Festa, fogos, bombas… mais um trocadilho e penso na “rave-hate”. “Rave” significa festa em que se tocam músicas eletrônicas, geralmente realizada por mais de uma noite e em grandes espaços afastados dos centros urbanos. “Rave” em inglês também significa “delírio”, palavra cara para os psicanalistas. A “rave” macabra ao som retumbante das bombas e do ódio (“hate”) se estende ininterruptamente até agora, Gaza virou pó e o castelo das ilusões de humanidade, também.

Perdemos sim o fio da meada e ingressamos no fio da moeda. Seremos devorados pelo Minotauro? Astério tinha pai-touro e mãe-rainha. A mãe o protegeu na infância, mas era fruto de um cruzamento não-natural e tornou-se feroz demais. Então, depois de crescido, foi morar no labirinto, construído por Dédalo, porque danara-se a comer gente. É nesse labirinto onde toda a humanidade se encontra agora.

Levanto-me e tento sair. O sol não apareceu, está escuro e o céu permanece encoberto pela poeira cinza. Aperto o interruptor, mas a luz não acende. E não tem água na torneira. Procuro a saída do labirinto, mas não a encontro.

Estou soterrada.

A porta está emperrada.

E não abre mais.

Ariadne? Me escuta?

Notas

(1) homem: coloco “homem” para enfatizar que as guerras são feitas predominantemente por homens. Às mulheres e às crianças, restam-lhes os piores sofrimentos.

(2) Cf. https://www.huffpost.com/entry/israel-defense-minister-human-animals-gaza-palestine_n_6524220ae4b09f4b8d412e0a/amp

(3) Cf. https://www.haaretz.com/israel-news/2023-11-14/ty-article/china-iran-arab-nations-condemn-israeli-ministers-nuclear-bomb-statement/0000018b-cce6-df9a-ab8b-deeeb98f0000

Cf. https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2023/11/06/reinaldo-azevedo-dizer-que-nao-ha-inocentes-em-gaza-e-tese-genocida.amp.htm

(4) Cf. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/israel-joga-bombas-onde-tem-criancas-e-mata-inocentes-sem-nenhum-criterio-diz-lula/

(5) Cf. https://www.haaretz.com/israel-news/2023-11-14/ty-article/china-iran-arab-nations-condemn-israeli-ministers-nuclear-bomb-statement/0000018b-cce6-df9a-ab8b-deeeb98f0000

(6) https://revistaforum.com.br/global/2023/11/20/video-sinistro-em-coro-crianas-de-israel-cantam-louvam-exterminio-palestino-148010.html

(7) Cf. https://apublica.org/2023/10/educacao-e-voltada-para-o-exercito-e-terrivelmente-racista-diz-professora-israelense/?amp

(8) Cf. https://oglobo.globo.com/google/amp/mundo/noticia/2023/11/23/lista-de-palestinos-que-serao-libertados-por-israel-inclui-menores-presos-sem-acusacao-formal-e-por-atirar-pedras.ghtml

Cf. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/voce-esta-com-saudades-de-mim-veja-criancas-refens-israelenses-encontrando-familiares/

(9) Cf. https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-12/unicef-conflito-no-oriente-medio-e-guerra-contra-criancas

(10) Cf. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/papa-francisco-diz-que-guerra-entre-israel-e-hamas-e-terrorismo/

(11) Cf. https://midianinja.org/news/haaretz-investigacao-aponta-que-mortos-em-rave-foram-assassinados-por-israel/ 

Referências:

Machado de Assis – Quincas Borba

Sigmund Freud – O mal-estar da civilização

Susan Sontag – Diante da dor dos outros

Valton de Miranda Leitão – O inimigo necessário

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: Palestina, crianças, mortes, guerra, psicanálise, humanidade.

Imagem: foto da autora 

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Tags: crianças | guerra | Humanidade | mortes | Palestina | Psicanálise
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