Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O Eu com o Isso: afetos em emergência – Um exercício federativo
Zelig Libermann – SPPA
O 29º Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado entre os dias 01 e 04 de novembro passado no Royal Palm Hall, em Campinas, São Paulo, aconteceu em um clima de imensa satisfação por voltarmos a um encontro presencial, após o longo período da pandemia de Covid-19. Encontro de abraços, apertos de mãos; de reuniões não mais através de telas, mas ao redor das mesas das reuniões científicas, dos cafés, restaurantes e todos os outros pontos de confraternização.
Como sabemos, nada se cria bem sem um tempo necessário para tal. É através dos anos que as organizações humanas se impõem como presença multiplicadora ou se findam sem deixar memória. E o tempo se combina com a capacidade criativa para a construção de ideias que imprimem rumos e originam um perfil grupal que se continua ao longo de gerações.
E justamente pelo trabalho de gerações de psicanalistas que, com dedicação ao exercício clínico da psicanálise, ao estudo das teorias psicanalíticas, à organização de entidades federadas e às ações junto à comunidade construímos a FEBRAPSI, tornando possível chegamos à 29ª edição do Congresso Brasileiro de Psicanálise.
Um evento dessa magnitude não se constrói sem um olhar para o futuro. E foi com esse olhar que, em abril de 2022, momento ainda instável da pandemia, realizamos, no Rio de Janeiro, a tradicional reunião do Conselho Cientifico, composto pelos diretores científicos das federadas. O produtivo debate gerou o tema “O Eu com isso: afetos em emergência”. A atmosfera agradável da reunião consolidou a intenção que vicejava na diretoria: a realização do congresso presencial.
Fruto do animado debate, característico dessas reuniões, “O Eu com isso: afetos em emergência” é uma referência à contemporaneidade (tempo de afetos que emergem intensamente, levando a situações de emergência) e também, e principalmente, uma homenagem ao centenário de “O Eu e o Isso” (ou “O Ego e o Id” das traduções primeiras da obra de Freud). Texto que inaugura a teoria estrutural e se relaciona à nova concepção pulsional, inserindo outros elementos constitutivos de caráter enigmático na descrição do aparato psíquico.
Artigo fundamental da obra freudiana, “O Eu e o Isso” é parte do movimento denominado por André Green de “O Giro dos anos 20”, no qual Freud fez inúmeras transformações em sua obra levado pelas vivências da guerra e a percepção dos fracassos na clinica. De acordo com Green, a I Guerra Mundial trouxe um questionamento: o que empurra os homens à matança e às feridas que os deixarão inválidos e sofrendo para o resto da vida? No que se refere à clínica psicanalítica, Green propõe que, nos casos de pacientes que não melhoravam, a despeito da terapêutica, Freud consideraria a perenidade do conflito psíquico, levando ao sofrimento permanente, que poderíamos chamar de “guerra interna”. Green traz, então, a interessante questão: viveria Freud entre o porquê a guerra e por que a manutenção da enfermidade?
Com sua admirável capacidade de repensar as próprias ideias e propor novas formulações, sem, no entanto, descartar suas teorias prévias, em “O Eu e o Isso”, Freud apresenta um novo modelo tripartite da mente, a teoria estrutural: o Isso, a sede das pulsões, com seu potencial permanente de energia desligada esperando por uma representação; o Eu que passa a descrito com uma parte inconsciente, a qual se mostra resistente e nem tão colaboradora do tratamento; e o Supereu. Fruto da identificação com o Supereu dos pais, os quais se identificaram com o Supereu de seus próprios pais e, assim retrospectivamente até os acontecimentos que levaram ao estabelecimento de leis básicas como a barreira ao incesto, o parricídio e o ato de matar, as quais, segundo Freud, deram origem à civilização. Civilização que, apesar da evolução, vive um momento de profundo abalo das identificações civilizatórias.
No centenário de “O Eu e o Isso”, a destrutividade inata do ser humano se faz presente e mantém atual a pergunta: Por que a guerra que empurra os homens à matança e às feridas que os deixarão inválidos e sofrendo para o resto da vida? E mais ainda: Como ultrapassar a barreira que se opõe à civilização e à natural inclinação dos seres humanos a agredirem-se uns aos outros? Evidentemente, todas as respostas podem ser insuficientes. O que nos cabe é continuar a refletir.
E então parafraseando o tema do Congresso podemos nos perguntar, E a psicanálise com isso? Acredito que a psicanálise (que vem trabalhando, cada vez mais, em intensa colaboração com outras áreas do conhecimento humano e da ação comunitária) possui um arcabouço teórico capaz de contribuir para a tentativa de transformação da difícil realidade de nosso tempo, através de compreensões alternativas às polarizações, negacionismos, fanatismos etc, isto é, à barbárie que nos cerca.
Nesse sentido, “O Eu e o Isso” é uma obra viva que permite debater metapsicologia, clínica psicanalítica e questões sociais e culturais ligadas à transmissão das normas básicas, através do processo de identificação contínua entre as gerações.
A amplitude do texto pode ser constatada na variedade de temas que foram abordados durante o evento. Cabe salientar a tradição participativa em nossos congressos: uma vez mais a totalidade da agenda foi organizada a partir das proposições enviadas, de forma entusiasmada, pelos membros de todas as federadas.
Entre julho de 2022 e outubro de 2023, as dezoito federadas, localizadas em quinze cidades, e também a ABC, realizaram eventos preparatórios, quatro on-line e doze presenciais. Esta jornada de preparação do Congresso intensificou a relação com as federadas, reforçando o caráter federativo da FEBRAPSI.
A FEBRAPSI e a SBPCamp (federada anfitriã) trabalharam intensamente para oferecer aos psicanalistas de todo o país, bem como aos profissionais de áreas afins e estudantes universitários, um encontro que se mostrou rico de experiências científicas, culturais e sociais.
Com relação ao conjunto das atividades científicas, a visão pluralista da psicanálise brasileira se materializou na colaboração de todas as federadas e seus membros. As inúmeras propostas de atividades enviadas (que refletem a amplitude do movimento psicanalítico de nossa Federação) foram bem recebidas pelos congressistas, aceitação esta que se refletiu nos debates com a presença maciça dos participantes nas dezesseis salas simultâneas, que funcionaram ao longo de todo o Congresso.
Esperamos que a experiência vivida em Campinas se constitua em um estímulo para nos reencontrarmos no próximo Congresso que ocorrerá em 2025 no Rio Grande do Sul.
Até breve!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Instituições psicanalíticas
Palavras-chave: Psicanálise, FEBRAPSI, Congresso Brasileiro, Eu, Isso
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