Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
OnlyFans ou fanáticos
Luciana Saddi – SBPSP
OnlyFans, rede social nascida em 2011, tem como ideia a venda de conteúdos exclusivos. É por intermédio da rede que influencers e artistas criam e comercializam material único — fotos, textos, vídeos — destinado somente a fãs. Como ocorre em toda rede, pode-se criar um perfil ou optar por seguir algum atraente. Ao se registrar, se tem acesso a conteúdo gratuito, disponível a todos, mas se preferir receber material exclusivo é preciso se tornar assinante mensal do perfil escolhido ou comprar conteúdos de forma avulsa. Em geral, os perfis disponibilizam conteúdo adulto, ou seja, de cunho sexual. Diz-se que nem todos os perfis dispõem de conteúdos de caráter sexual e que a rede proibiu conteúdos de sexo explícito. Não consegui descobrir se é verdade.
Ao percorrer os perfis gratuitamente disponíveis na plataforma, não é raro acabar deparando-se com moças ensinando receitas culinárias em poses sexys, roupas decotadas e sorrisos maliciosos. Garotas ousadas que elevam duas abóboras à altura dos seios e outras insinuando que o movimento do liquidificador lembra o do vibrador. No OnlyFans os perfis associam inúmeras atividades humanas diárias ao sexo, desde varrer o chão ou limpar a casa (em trajes sexys) à programas de ginástica, yoga e meditação. Cabe ressaltar que a psicanálise já identificara a presença da sexualidade nas mais insuspeitas atividades humanas, no entanto, os vídeos da rede parecem conter proposta diferente.
Não se trata de perceber o prazer que subjaz oculto às mais diversas ações cotidianas e que permanece encoberto por diferentes camadas de véus; trata-se de associar diretamente sexualidade às atividades humanas diárias, sem véu nem ocultação, de tal forma que mais parece um simulacro de sexualidade, excitação sexual ou prazer. Eu quero te excitar com abóboras nos seios e liquidificador tremulante. Bata uma punheta para mim!
Na plataforma, os estereótipos se multiplicam: são os mesmos utilizados pela indústria pornográfica, que associa banana a pênis, flor à vagina; que apresenta corpos ultraconstruídos, expondo bundas, seios, bocas e pênis agigantados e vulvas infantilizadas. A falta de criatividade e a mesmice das formas não se trata de uma simples coincidência: é parte integrante do conteúdo plastificado, pré-fabricado, industrializado que, admita-se, faz a cabeça dos onanistas, de modo que a sexualidade é tratada de forma rasa, sem densidade ou complexidade, como tudo atualmente. Configura, assim, um espetáculo pequeno, pobre e viciado de perversão sexual capitalista capaz de, em 2022, excitar 238 milhões de usuários e induzi-los a gastar 5,5 bilhões de dólares.
Ao navegar na rede, tive dificuldade em encontrar rapazes se oferecendo maliciosamente: a regra parece ser constituída por uma grande maioria de garotas jovens, mas encontrei perfis de alguns homens jovens e musculosos, artistas pornôs consagrados e educadores físicos, em geral mais contidos na apresentação que as moças. Acredito que a concorrência feminina as obrigue à propaganda mais agressiva, além da indiscutível antiga exploração sexual da mulher como objeto. Reportagens jornalísticas apontam problemas de saúde mental, segundo depoimentos de garotas que entraram na rede, por excesso de exposição e manipulação dos usuários.
Ainda que tudo seja permitido e que a moralidade tenha migrado da cama para a mesa, como afirmam os psicanalistas Herrmann e Minerbo (1998), essa estratégia pode sair cara para quem se vende. A suposta proteção virtual não impede o transbordamento da angústia, e, nesse sentido, os vazamentos são de inúmeras ordens — por mais que se tente aplacar ou moldar o sexual, os riscos próprios à sexualidade pulsam.
A rede me fez questionar sobre o destino da sexualidade. Mercadoria desde sempre, essa forma de comercialização sofreu transformações nos dias atuais. OnlyFans mostra a vitória não apenas da imagem virtual, mas também da fantasia sexual sobre a materialidade da vida e do sexo — de fato, a fantasia e o devaneio são aparentemente mais controláveis do que pessoas; mesmo quando são pagas para se submeterem aos desejos dos outros, não há garantia que a performance corresponda à fantasia. A rede também é prova da “uberização” do sexo: qualquer um pode ser empreendedor de si mesmo e obter rendimento, basta administrar a própria carreira. Evidentemente, é um sinal inequívoco de emancipação feminina, afinal, sempre tivemos nossa imagem vendida por uma indústria machista dominada por homens — hoje, somos nós quem lucramos com a indústria pornô soft. Mas e o sexo?
Enquanto passeava por abóboras, abdômens trincados e músculos peitorais, lembrei da trilogia teatral dirigida por Maurício Paroni de Castro para a companhia de teatro Atelier de Manufactura Suspeita. “Pornografia Barata”, com texto de Andrés Lima, reúne uma diversidade de cenas de cunho sexual. Encenada no teatro Saravejo, antro do Baixo Augusta, a peça sugere ao espectador estar num ambiente de peep-show. A encenação foi interrompida pelo assassinato do proprietário da casa, transferida para o Viga Espaço Cênico e, posteriormente, ao Satyros 1.
A primeira cena é inesquecível: dois casais num restaurante conversam sobre o cotidiano e, ao mesmo tempo, pensamentos proibidos de cunho erótico em relação aos comensais vão lenta e progressivamente sendo revelados. O contraste entre a conversa amena e os desejos sexuais que se infiltram no pensamento e a costura entre ambos os registros apresentam “zonas de sombra do cotidiano sexual, carregadas de consumismo e confusão emocional”, nas palavras do diretor.
Já a peça “Farsas Libertinas”, encenada no espaço de práticas sadomasoquistas do Domina Club, tem como tema a história da sexualidade. Escrita por diversos autores do teatro paulista que preferiram o anonimato, é composta por cenas inspiradas tanto na obra de Freud, Sade e Masoch quanto na vida e sexualidade dos frequentadores e proprietários do clube. O cenário da peça é a própria câmara sadomasoquista que se encontra protegida no porão de uma antiga casa do bairro da Aclimação. As paredes são decoradas com chicotes, cordas, algemas — instrumentos de tortura destinados a afligir corpos que não se distinguem daqueles usados em construção civil provocaram em mim questionamento ininterrupto (entre excitação e medo) para saber o que se fazia com aquilo. Tronos e coleiras. Postes e correntes de ferro. O impacto sombrio e lúgubre para os não iniciados é forte. A peça amena, algumas vezes cômica, contrasta com a câmara de horrores e as fantasias suscitadas pelo ambiente.
“Magic Clube – Nefertiti”, por sua vez, encenada no Swing Club e no Satyros 1, é dividida em dois tempos. No primeiro, apresenta ao público os personagens frequentadores, trabalhadores e proprietários do clube de swing, além de seus dramas pessoais. Em mais de dez monólogos, os personagens das mais variadas camadas sociais e profissões contam histórias de vida que se confundem com preferências sexuais. No segundo tempo, as regras de funcionamento da casa, bastante estritas, são colocadas em evidência.
Ao contrário dos perfis encontrados na plataforma OnlyFans — que soam previsíveis ou bobos —, a trilogia de Paroni de Castro é bastante perturbadora. Afinal, o diretor teatral trata o sexual com boa dose de erotismo ao expor a falta de controle e angústia a que estamos sujeitos nas práticas eróticas, errantes por natureza e que, em geral, tanto nos surpreendem.
O controle da cena sexual e a garantia do gozo são pilares fundamentais das perversões sexuais e partilham com o OnlyFans o elemento “espetaculoso” e pobre, sem lampejos de linguagem ou pensamento. Há pouca manipulação da palavra ou inovação narrativa: o movimento centra-se na figuração, com sequências de imagens para criar simulacro de sexo, a fim de estimular a masturbação do seguidor. Onde poderia haver espaço de liberdade sexual e erotismo, encontramos um tipo de sexualidade pré-concebida, repetitiva, que expõe algumas fantasias sexuais masculinas dominantes e congeladas, sem risco nem mistério; fantasias encenadas repetidamente para garantir o gozo e o domínio da cena sexual.
A mesmice sexual — e o rigoroso controle do objeto — corresponde a um tipo de fanatismo político ou ideológico, com respostas prontas e acusações costumeiras. O fanático se comporta de forma semelhante ao perverso sexual; não há espaço para especulações e experimentação, tudo é conhecido e tudo está resolvido. O engessamento da razão, a paralisação do pensamento: todas essas questões têm como corolário o sexo na rede. A exploração erótica, a troca inesperada de carícias, o medo de descobrir nova zona erógena, de se sentir diverso de si mesmo, a incerteza do gozo, são substituídos pela certeza orgástica, que expulsa a angústia e o risco próprio ao erotismo. OnlyFans, Only Money, Only Nothing, Only Only e nada mais.
Referências
Herrmann, F. e Minerbo, M. (1998). Creme e Castigo – sobre a migração dos valores morais da sexualidade à comida. In Carone, I. Psicanálise fim de século. São Paulo: Hacker, pp. 19-36.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: Sexualidade, Erotismo, Perversão Sexual, Fanatismo, Masturbação
Imagem: Francisco de Goya. “A Maja Desnuda”. 1795-1800. Óleo sobre tela, 97,3×190,6cm, Museu do Prado, Madri.
•Francisco de Goya. “A Maja Vestida”.
Cerca de 1800-1807. Óleo sobre tela, 94,7x 188cm, Museu do Prado, Madri.
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