Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O Giro da Manivela Amarela
Cristiane Mota Takata – SBPSP
“É um assunto muito complexo, num momento muito delicado“. Melhor escutar. Assim, talvez fosse possível captar sinais de algum intenso e urgente trabalho subjacente às palavras, estas que não cessam em desdizer o básico sentido: violência, destruição…
No meu silêncio, recordo: por volta de 3 ou 4 anos de idade ganhei um brinquedo, imitação lúdica de uma filmadora Super 8. Pequena, para caber nas mãozinhas de criança. Era vermelha e tinha uma manivela amarela que, quando girada, exibia, lá ao fundo da objetiva, um “filminho”.
Veio acompanhada de uma “fita” com uma versão animada das Viagens de Gulliver: um gigante chegava a uma ilha habitada por seres diminutos. Bem se pode deduzir que o desengonçado Gigante, ao mínimo movimento, levava destruição aos pequeninos.
Aqui, imagino incontáveis pequenos elementos psíquicos trabalhando freneticamente para formar e transformar representações que acolham os afetos transbordantes, fazendo vias para dissipar a gigante dor.
Lá, os pequeninos da ilha, para evitar seu extermínio, organizaram uma engenhosa tática: arqueiros lançavam aos céus, o mais alto que podiam, uma chuva de flechas. Elas atingiam os pés do Gigante que, sentindo uma pinicada, parava para coçá-la. Mas, ao dar um novo passo, ele tropeçava na corda que já havia esticado logo à sua frente e, então, desabava sobre o chão. Ágil e coordenadamente, escalavam o corpanzil, sobre o qual lançavam e entrelaçavam muitas cordas, prendendo-o ao chão. Imobilizado o Gigante, os pequeninos comemoravam a vitória.
Nesta lembrança, reencontro um brinquedo muito querido e, na imaginação, o ofereço a alguém que vi ontem: uma criança, com o corpinho coberto por poeira. Treme tanto, e tão involuntariamente, que me convoca a abraçá-lo para conter um pouco daquele tétrico tremor. Basta? Não tenho tempo de responder: vem mais uma, duas, dezenas de imagens trágicas assim… As cordas representacionais precisam ser entrelaçadas para conter o Gigante! Mas nem tudo podem as cordas, por si mesmas… Nem eu posso, sozinha… O que precisamos fazer, então?
Ativamente, descartei saber se o garotinho “era” uma criança israelense ou palestina. “Era”, entre aspas, para sinalizar que “ser” um condensado, sob qualquer denominação como nacionalidade, etnia, religião, ideologia, me faz pensar muito sobre os limites da identidade. Como encontrar um lugar legítimo, plataforma criativa, para nossas histórias e filiações sem que se interponham como barreira entre nós e o vasto mundo das diferenças?
Em minha mente, o giro da manivela amarela dança, perigosamente, com as imagens da violência. Com aquele brinquedo, eu podia mandar no tempo e na história: girando a manivela para frente, era eu quem levava os pequeninos rumo à vitória. Em sentido contrário, sob meu comando, a manivela fazia o Gigante se reerguer do chão e retomar a destruição. Acima da minha vulnerabilidade às investidas dos instintos, eu era mais gigante que o Gigante!
O gigantismo, fruto da onipotência, gira a manivela amarela, alucinando o poder sobre os destinos de tudo e todos. A onipotência, mestre do ressentimento, infiltra-se nas teses históricas, geopolíticas, religiosas ou ideológicas que têm cruzado os céus das ideias como mísseis que detonam os edifícios do diálogo.
Tropeço na poesia. Esperança e alívio: há uma “pedra” no caminho para interromper o giro! Paul Celan, dedicado a Bertold Brecht, interpela o gigante:
“Que tempos são estes,
em que uma conversa
é quase um crime,
por incluir
o já explícito?“*
O gigantismo faz os discursos desengonçados e cruéis demais para se moverem entre nós sem nos ferir. Palavras-morte. Seus enormes pés retóricos esmagam os saberes mais simples. Estes saberes que são esplêndidos porque vem depurando o essencial de milênios de sociabilidade e, talvez por isso mesmo, não precisariam ser sustentados por nenhuma condensação além do reconhecimento de nossa condição primeira, viventes que somos.
Se assim pudesse ser (ainda pode?) cumpririam a função de unidades básicas de um renovado modo de vida: se alguém estivesse sedento, lhe ofereceríamos água. Se tremesse de pavor, o acolheríamos. Se ferido, buscaríamos curar. Mas é mesmo um trabalho imenso não sucumbir ao medo e ao ódio pelas injúrias sofridas…
Transformação que pediria um cultivo delicado dos afetos e dos sentidos, até que pudessem florescer as ideias-ponte, os gestos-laço, as palavras-vida. Tarefa para um coletivo de pequeninos, não para gigantes…
*Poema “Uma Folha, desarvorada, para Bertold Brecht”, de Paul Celan, traduzido por Cláudia Cavalcanti.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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