Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O dia em que descobri o ódio aos judeus
Michelle Gorin – SBPRJ
Fui criada numa família judia, pouco religiosa no sentido da observância às práticas litúrgicas, mas muito ligada à identidade cultural, à história do povo, aos valores judaicos, à vida comunitária. O medo do Holocausto sempre esteve presente nas conversas e também na valorização da história dos meus bisavós, imigrantes da Polônia, da Rússia e da Romênia, que vieram logo antes da guerra em porões de navios, fugindo da miséria, – pois não empregavam mais judeus – ou fugindo dos pogroms que destruíram suas casas. Eu cresci em uma pequena escola judaica, numa pequena bolha de pessoas privilegiadas na zona sul do Rio. Sempre gostei de ser judia, das histórias, das festas, dos encontros em família, mas também sempre achei difícil, já que pertencemos a uma minoria demográfica na cidade e é meio solitário não fazer parte da maioria.
Me lembro da primeira vez que fui à Israel e me senti em casa, era normal ser do meu povo lá, foi muito bom. Ouvir hebraico na rua. Ao invés de Natal, todos os temas eram sobre Chanuká e eu amei essa sensação.
Quando entrei na faculdade de psicologia, embora não tenha saído muito da bolha, por ter feito PUC, saí da bolha de estudar numa instituição judaica. Tentei me abrir, fiz novos amigos, fui trabalhar em vários lugares diferentes do que estava acostumada, no SUS, em bairros pobres, em comunidades vulneráveis pela violência e pela miséria.
Depois veio meu encontro com a psicanálise e com os psicanalistas. Apesar de existirem bastantes judeus nesse grupo, eles eram muito distintos dos da minha família. Passei a pensar muitas coisas diferentes e procurei abrir minhas perspectivas. Ouvi várias vezes de um psicanalista da nossa sociedade que quem diz “faria tudo pelos meus filhos”, não faria tudo pelos filhos dos outros. Essa fala me gerou impacto, porque sempre cresci com esse amor dos meus pais que por mim fariam tudo. Pensei que era verdade: precisávamos olhar para os filhos dos outros.
Acompanhei, já adulta, o movimento juvenil sionista e judaico em que cresci e sempre amei participar, falar mais de dois estados para dois povos do que na minha época, e apreciei essa posição. Gostava e me sentia orgulhosa de ser crítica ao governo de Israel. No início da idade adulta, me aproximei dos assim chamados “judeus de esquerda”. Nisso, me esforçava para “sair da bolha”, circulando dentre ideologias dissonantes daquelas que ouvia. Me esforcei para ver o mundo por outras perspectivas. Passei a frequentar menos a comunidade judaica, incomodada com posicionamentos de direita frequentes.
Nesses meios de assim chamados “judeus de esquerda”, se dizia que o Holocausto não é uma questão judaica – é uma questão do mundo, que todos os povos precisam cuidar um do outro. Passei a votar em partidos de esquerda, cujos alguns membros queimavam a bandeira de Israel aqui no Rio, com a ideia de que há uma distância grande entre aqui e lá, e precisamos tomar conta das coisas certas aqui, da pobreza, da desigualdade social. Minha família sempre criticou isso, pois precisávamos também olhar para nós mesmos e para a nossa segurança. O medo do ódio aos judeus sempre esteve presente. Eu tentei ignorar isso.
Ano passado, com quase 40 semanas da gravidez da minha filha, perdi meu avô materno. Em seu enterro, falei da minha tristeza por ele não conhecer sua primeira bisneta por uma diferença de tão poucos dias, mas sabendo da alegria que ele teria na continuidade da família. Tenho pensado muito nele esses dias. Ele me dizia: “não se engane neta querida, essas críticas todas a Israel são puro ódio contra judeus”, eu respondia criticando o Bibi (Netanyahu) durante horas, falando sobre dois estados para mais de dois povos. Citava para ele o Rabino Jonathan Sacks, dizendo que precisamos cuidar de todos os povos para que cuidem da gente também; que não devíamos nos fechar numa bolha. Ele me ouvia, mas nunca mudou de ideia. De minha parte, era para mim horroroso ouvir isso que ele me dizia – para mim essas palavras soavam como completamente dissonantes às minhas expectativas humanitárias
Chegou o dia 7 de outubro e o massacre em Israel. Na segunda-feira, durante o dia de trabalho, em um esforço mental enorme enquanto analista para me manter inteira diante do horror perpetrado contra meu povo e ouvindo muito sobre isso, de diferentes formas, o dia inteiro no consultório, saí correndo para buscar minha filha na escola judaica, a mesma que frequentei. Cheguei lá e me deparei com um monte de policiais na porta. Perguntei assustada o que havia acontecido e tentaram me acalmar, dizendo que estava tudo bem, não havia nada acontecido, além de ameaças. Experimentei e experimento desde então uma nova angústia, um desespero, me vem à cabeça a ideia que não vou poder proteger minha filha do ódio contra os judeus. O mundo não vai nos proteger. Voltando para casa, penso que não devia mandar minha filha para a escola no dia seguinte. Penso em seguida na minha diarista, que me ajuda com a casa enquanto fico no consultório, em como ela consegue ir trabalhar com uma guerra na Maré, onde mora e há semanas de operações policiais, e deixar seus filhos lá no meio de outra guerra. Ela me conta detalhes nesse dia e me sinto culpada e preocupada. Ela me pergunta generosamente pela minha família em Israel.
Os dias se arrastam depois disso. Acompanho diariamente como estão minha família e amigos em Israel, com medo, assustados e traumatizados. Tentamos acompanhar e nos mostrar presentes à distância. Quem foi convocado para o exército, quem está desaparecido, quem está no bunker. Muitos deles protestavam contra o Bibi semanalmente antes disso. Passo a ver notícias diárias de situações de ódio contra judeus, lugares depredados, marcados com a estrela de David, pessoas mortas, atacadas, esfaqueadas por serem judias. Penso que a perseguição se repete e não há saída. E as fotos e notícias continuam: lugares onde se lê na porta que não podem entrar judeus, placas em manifestações pedindo que se limpe o mundo de judeus, diversas menções a Hitler.
Começam também os ataques aos judeus e a Israel nas minhas relações mais próximas e na mídia. Essas semanas foram insuportáveis. Listo aqui tudo que ouvi de amigos e que considero ódio contra judeus para que vocês possam compartilhar da minha angústia:
– No dia seguinte ao ataque, recebo um artigo que diz que a culpa é do Bibi. Puxa vida, esse é o primeiro comentário que as pessoas têm a me fazer? Antes não vem uma pergunta de como está minha família lá após o massacre? É culpa do Bibi sim, é verdade. Mas não é só, os ataques aos judeus acontecem muito antes do Bibi existir.
– Amigos explicam que não são contra Israel, são contra que haja etnoestados. Mas como assim? Por que não falaram nada sobre as dezenas de países muçulmanos? Ou não percebem que nós vivemos em um estado que nada tem de laico? E que justamente não existem etnoestados cristãos, o que na prática faz da maior parte do mundo um etnoestado cristão?
– Amigos insinuam que a origem disso foi porque Israel não quis dividir o território desde 1947. É possível tanta ignorância? Por que será que não lhes é sabido que houve, ao longo da história, diversas recusas dos estados vizinhos à partilha da Palestina, apesar das determinação dos órgãos de regulação política internacionais?
– Amigos me dizem que a Palestina precisa ser livre. Como perguntou a Marion aqui no OP, o que quer dizer isso? Livre de judeus? É para os judeus irem embora de Israel ou do mundo?
– Aqui no OP, negam que há conexão entre judaísmo e a terra de Israel. É sério? Ou outros indícios claros do ódio aos judeus, quando usam a palavra judeus ao invés de israelenses para fazer críticas.
– Amigos, nem judeus, nem israelenses, nem sionistas, nem palestinos, nem árabes, nem muçulmanos, mas que durante a última semana fizeram um curso para se considerarem especialistas experientes no assunto há décadas, tentam me explicar que sionismo nada tem a ver com judaísmo.
– Amigos tentam explicar que na Palestina o direito ao território é uma questão de quem chegou primeiro. Como assim? Vão usar argumento de antiguidade contra a primeira religião monoteísta? Será que vou precisar mesmo usar o argumento pobre sobre a antiga Judeia?
– Amigos, que não raro afirmam que existem “dívidas históricas” no Brasil e no mundo, me explicam que não se pode exigir solidariedade diante do massacre ao nosso povo – nessa situação, o máximo que se deve é pedir.
– Amigos me explicam que nunca os judeus foram expulsos de países. Oi? Ah, acrescentam, de países árabes, da Europa sim. Não sabem nada sobre a história do Oriente Médio.
– Amigos comparam com o 11/09. Eu vejo tantas diferenças, você romper com as fronteiras de um país e degolar bebês é mais do que um ataque terrorista.
– Amigos me explicam que o Hamas matou só colonos. De onde tiraram essa ideia? Para justificar o terrorismo?
– Amigos me explicam que o Hamas precisa ser ouvido. Em que? Que Israel deve desaparecer?
– Amigos dizem que não são antissemitas porque ‘até tem um amigo judeu’.
– Amigos tentam me explicar que sionismo não dá, mas outros povos podem querer ter estado próprio. Direitos iguais, né?
– Amigos tentam me explicar que nunca há tantos conflitos dentro dos países árabes, e que nunca mataram tantos palestinos. Essas pessoas não sabem ou preferem desconsiderar quantos dos outros países que não Israel vizinhos à Faixa de Gaza e à Cisjordânia são governados por ditaduras? Ou quantos palestinos e outros grupos foram assassinados em outras guerras que não envolviam Israel?
– Amigos me explicam que o New York Times confirmou que foi sim um ataque de Israel ao hospital em Gaza. Sério? Foi o contrário: o New York Times se retratou ao ter informado, prematuramente, que a culpa do ataque era israelense.
– Amigos falam da desproporção das reações de Israel. O que seria proporcional?
– Uma jornalista em um podcast de um dos maiores jornais de São Paulo diz que não se tem certeza da morte de civis em Israel porque não está vendo as famílias chorando em luto. Simultaneamente, não se questiona como é possível que, em um contexto de guerra, um governo paralelo seria capaz de contabilizar os corpos de civis supostamente assassinados pelo governo de Israel. Vale lembrar que, em menos de 24 horas após o dano ao referido hospital, o Hamas já dizia que 500 pessoas haviam morrido.
– Um político diz que não se pode matar milhões de palestinos por causa do massacre. Milhões? Acho que foi de outro povo que mataram milhões há poucas décadas. A totalidade populacional da Faixa de Gaza é de 2 milhões.
Outras memórias vêm à tona de outras épocas:
– Amigo visitou Israel e disse: aquilo é um país de mentira. Quase respondi que ao longo da história o país já foi reinventado tantas vezes. O que seria de verdade? O exílio? A diáspora? Ou o genocídio mesmo?
– Amigo comentou um caso de corrupção em algum lugar – e comenta: um deles é judeu. Sim, tem judeus horríveis, como em qualquer outro grupo de pessoas. Por que a necessidade de destacar? Destacou a origem de alguma das outras pessoas envolvidas?
Pronto. O mundo já discute novamente se os judeus são bons ou maus. Para que mesmo que eu me esforcei para sair da bolha? Penso no meu avô: as críticas a Israel são ódio aos judeus. Agora eu entendi. Só agora. Ele entendeu. E eu não quis ouvir. Não que Israel não mereça críticas e não erre. Mas o ódio aos judeus é descarado, estrutural e negado veementemente. Agora, saiu da toca.
Lembrei que na defesa da minha tese de doutorado, meu pai pediu a palavra e falou sobre orgulho de mim, bisneta de 8 avós imigrantes analfabetos, de ter chegado aonde cheguei. Me emocionei lembrando da fala do meu pai, de me lembrar da minha história e de todos que se esforçaram para que eu tivesse as condições materiais e emocionais que hoje tenho. Me senti tão ingênua de ter me sentido privilegiada esses anos todos, apesar de saber que continuo sendo. Tudo tão efêmero, recente. Me lembro então de estudar história judaica na escola e aprender sobre todas as perseguições no século passado, assim como em todos os outros. Estudar não é suficiente. Só sentindo na pele para entender.
No meio desses dias, me deparo com a notícia de que minha sinagoga foi pichada. Palestina Livre. Escrito Isis no meio. Como assim? Me lembro então de que, quando pequena, minha escola algumas vezes foi pichada com suásticas na porta ou de estar no dia de Yom Kipur saindo da sinagoga, alguém diante da multidão abrir a janela do carro e gritar Heil Hitler. Só penso: como vou proteger minha filha?
No meio disso, a guerra que vivemos no Rio fica pior ainda, dessa vez perto da casa da babá da minha filha, digo para ela não vir e ficar com o filho dela, ou para ela vir com a família para minha casa e ficarem seguros. Ela me diz que quer levar a vida normal, apesar disso. Penso se devo mandar minha filha para a escola, já que picharam a sinagoga. Decido fazer o que ela diz, seguir a vida normal, apesar das guerras. Vou trabalhar e a babá vai deixar minha filha na escola, e me deixa um recado, que vejo aflita entre pacientes: ela está preocupada, tem muita polícia do lado de fora da escola judaica e os seguranças que controlam a porta e se revezam, estão todos juntos reunidos na porta. Ela não sabe mais se devemos seguir com a vida normal.
Quando me casei, minha avó paterna me deu o samovar – um utensílio com o qual esquentavam a água a carvão para tomar chá – da avó dela, de quem eu levo o nome em hebraico, trazido da Rússia enquanto fugiam. Escrevo hoje olhando para ele, tentando imaginar o que eles passaram. Com esse texto pretendo apenas compartilhar meus sentimentos mais íntimos nesse momento horrível para tantas pessoas. Hoje, tenho medo de não poder passar o samovar adiante; embora, até dia 7, eu nunca tivesse sentido esse medo de verdade.
Me vi esses dias querendo voltar para a bolha. Fui tentar marcar alguma comemoração de aniversário e me vi pensando que era melhor chamar apenas amigos judeus para poder falar sobre meus medos abertamente. Mas me recusei e encarei continuar vivendo no mundo. Também quis escrever sobre isso e tive medo, tive medo de escrever sobre a diarista e sobre a babá também, porque não seria correto escancarar tantas injustiças sociais, raciais e a desigualdade às quais estão submetidas. Ainda mais no meio psicanalítico, onde as pessoas frequentemente se sentem como tendo seus narcisismos tratados, pessoas que caem na ilusão de se pensarem como sujeitos que reconhecem muito o sofrimento dos outros e que os fazem ainda mais narcísicos. Eu não nego todas as guerras e injustiças que vivemos, inclusive as que eu mesma perpétuo através da realidade em que estou inserida. Mas aos judeus negam que haja ódio, o ódio que recebemos e os preconceitos que nos são dirigidos. E essa é a minha questão aqui.
Nós judeus somos pessoas, como todas as outras. Com dores que duram desde a escravidão no Egito. E as pessoas continuam a sentir ódio de nós. E isso dói muito. O que eu ensino para minha filha então? A se fechar numa bolha onde a gente pode pelo menos ter a ilusão de segurança ou cuidar de todos, mesmo que não cuidem de nós? De que vale tentar cuidar dos filhos dos outros, se as pessoas não cuidam da minha? Quem dos meus amigos se preocupou com a pichação na minha sinagoga em meio a tantas falas preconceituosas?
Só podemos ser menos preconceituosos se aceitarmos que somos preconceituosos. Assim como temos falado muito do racismo com os negros que é estrutural, ou do machismo estrutural, o ódio aos judeus também é estrutural. Minha geração cresceu ouvindo ‘never again’, mas ao mesmo tempo a cultura segue impregnada de preconceitos, os judeus continuam sendo vistos como os narigudos, ambiciosos, pão duros, com planos secretos de dominar o mundo. E nesse momento horrível para todos, estamos discutindo novamente se os judeus querem o sangue de criancinhas palestinas e muito pouco sobre mais um massacre que o povo judeu sofreu esse mês. Somos apenas poucos milhões hoje em dia. Lembro do título de um livro do saudoso Rabino Jonathan Sacks, “Teremos netos judeus?”
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Palavras-chave: judeus, Israel, racismo, ódio
Categoria: Política e Sociedade
Imagem: arquivo pessoal da autora, com o Samovar que passará para sua filha.
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