Observatório Psicanalítico – OP 441/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

O Anátema: Israel-Palestina-Gaza

Miguel Sayad (SBPRJ)

Face a matança anunciada e televisiva, arrastando grandes audiências e muitos apoios, fico tão envolvido que perco, espero que não morra, minha capacidade de pensar com calma e tranquilidade e, como uma criança que brinca, escrever.

Tomemos como elemento comum à busca de conhecimento, “a curiosidade como forma intelectual mínima”, levantemos cada “frase como um tapete: ver o que está lá escondido”, proponhamo-nos a se for o caso, “mudar de posição para confirmar o que deslizou há séculos para debaixo dos móveis”, “talvez pó ou talvez o decisivo”. Vamos “vasculhar a língua para encontrar aquilo que é capaz de provocar uma interrupção dos hábitos . . .” (1)

 “Nós sabemos que reduzir a divisão social e a projeção do ódio são importantes mecanismos para a coesão social. Isto requer encontrarmos meios para implementar a difícil tarefa de ouvir o outro, seja ele estranho ou mesmo inimigo. Foi Freud que abordou como este “estranho” é, de fato, alguém que representa uma não desejada e escondida parte de nós mesmos…” (2)

Conversa difícil: ânimos exaltados e posições extremadas definidas com certezas. Conversas de vida ou morte. Terrorismo e matança de inocentes. Destruição de cidades e seus habitantes.                           

Aqui vale muito a advertência de Hanna Arendt (3) de que o não-pensamento viabiliza o crime, embora pensar, acrescento eu, também pode ser perigoso para crenças e verdades arraigadas.

Violência e Terror – Israelenses e Palestinos

Eu e nós condenamos veementemente e ficamos horrorizados, preocupados, tristes e solidários com o sofrimento dos israelenses resultado da ação sádica e do inadmissível ataque à população civil de Israel, perpetrada por forças da resistência palestina, o Hamas, sem dúvidas por meio de ações terroristas. 

Eu e muitos judeus condenamos veementemente Israel e sua política de desrespeito aos direitos humanos e o brutal e desumano bloqueio de Gaza, sua política de terror e desumanização dos palestinos. Condenamos os sofrimentos infligidos aos palestinos pela ocupação ilegal e sistemática de suas terras. Condenamos mais ainda o bombardeio de Gaza e a matança de civis desarmados e acima de tudo crianças indefesas, disseminando o terror entre a população civil e inocente.

Entretanto, entre nós nunca houve espaço para o anti-semitismo, nem para a islamofobia, ou qualquer tipo de racismo. É fundamental que saibamos distinguir sionismo de judaísmo, Israel de pessoas judias. Combater a ocupação, o apartheid, a política de ocupação do Estado de Israel é uma coisa. Confundir isso com os judeus é outra. Muitos judeus pelo mundo estão dizendo: não em nosso nome. Seria fundamental que mais e mais judeus pudessem juntar-se a este apelo pelo cessar fogo e pelo fim da ocupação israelita.” (4)

Somos judeus, palestinos, brasileiros, sejamos compassivos, justos, estrangeiros. Somos psicanalistas. Somos, aqui entre nós, mais judeus que palestinos, pois nossos irmãos e irmãs de infância, familiares, melhores amigos, parceiros e parceiras de todos os dias, foram mortos, injuriados, massacrados.

Somos também palestinos, sofremos as injustiças dos poderosos, do Deus da Vingança, Deus dos Exércitos. 

Somos todos uma mãe em desespero pelas crianças mortas, minhas filhas e filhos. 

Somos todos também o pai tomado pelo impulso da matança que os matadores atraem para nós, que o convocam em nós, que a ele nos lançam. A orgia masculina de matar: Imemorial. Bíblica. Humana.

Tenho companheiros palestinos para me apoiarem nessa hora de desequilíbrio e perturbação, mas são poucos, pouquíssimos: Edward Said e uma bem recente, Lina Meruane, uma das poucas escritoras palestinas a serem publicadas em português.

Judeus, tenho vários e a eles, nesta grande reta final de minha vida psicanalítica, devo minha consciência crítica e esperta, desperta e vívida, sobre a história e a justiça no mundo e sobre o manejo clínico dos processos psicanalíticos, muito mais do que qualquer literatura psicanalítica: Primo Levi, Elie Wiesel, Isaac Bashevis Singer, Philip Roth, Daniel Barenboim: a música ! a música ! A inteligência humanista e a visão de justiça e reparação.

Psicanalistas sabemos do risco que qualquer ser humano padece de ser tomado pelas suas pulsões destrutivas e de como as condições ambientais de suas vidas contemporâneas e as condições de suas primeiras infâncias e desenvolvimento até a maturidade, alimentam ou suavizam as vicissitudes das pulsões e as reações a traumas extremados.

As Origens do Terror e sua função nas lutas de libertação. (Nos textos primordiais e nos mitos fundadores)

Em situações extremas, em seus clímaces, devemos, seguindo a sugestão de Freud, procurar saber como foi seu começo: tudo tem um começo, meio e fim. Podemos descobrir, com certa facilidade o começo, podemos influenciar o que se passa depois, durante o período intermediário, porém o final é a área do grande risco, do risco da mudança catastrófica. Precisamos ter calma e tranquilidade na nossa observação e intervenção, mesmo em meio a cenários clínicos de grande disrupção.

Aplicar a psicanálise à nossa civilização contemporânea implica a análise do monoteísmo e dos mitos bíblicos. Esses mitos foram incorporados muito facilmente, irrefletidamente, entre o povo comum, mas nós concordamos com Freud que as religiões podem ser distorcidas e serem inclusive utilizadas para justificar ações opostas aos seus princípios originais.

Vejamos, pois, algumas passagens do início dos tempos judaico-cristão. Algumas citações bíblicas dos livros do Êxodo e do Deuteronômio, que se relacionam ao tema do terror e da ocupação de cidades:

“Eu passarei na terra do Egito, naquela noite, Eu ferirei todo primogênito do Egito, do humano ao animal … Este dia será para vós um memorial: vós o festejareis, uma festa para Iawhe… Regra de perenidade, vós o festejareis.” ( Êx. 12:12-14) 

“E assim, à meia noite: Iawhe golpeia todo primogênito na terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, sentado em seu trono, até o primogênito do cativo, na casa do fosso, e todo primogênito de animal. Não, não há nenhuma casa onde não havia um morto.” ( Êx. 12:29-30)

Poderíamos considerar essa descrição como uma ação terrorista, aquela que espalha o terror entre a população?

A Conquista da Terra Prometida. A Ocupação. 

“Começa a conquista ! … Provoca-o à luta ! A partir de hoje começo a espalhar o terror e o medo de ti em meio aos povos que existem sob o céu. Eles ouvirão a tua fama, tremerão de medo diante de ti e desfalecerão.” (Dt 2,24.25)

“Apossamo-nos então de todas as suas cidades e sacrificamos cada uma delas como anátema: homens, mulheres e crianças, sem deixar nenhum sobrevivente …” (Dt 2,34 (conquista do reino de Seon).

É esse o método de conquistas territoriais apenas no passado longínquo?

A maioria ou, talvez, toda violência social é intimamente ligada à figura paterna, à imagem idealizada do pai primordial. Esse é o cerne da questão. Um desafio para o nosso trabalho e futuro, assim como de nossos filhos e netos, será desaprender a intolerância e aceitar a humanidade do diferente de nós e abdicar do prazer de matar e de fazer calar. 

Uma pergunta importante já que somos psicanalistas e não indivíduos cegos pelo ódio e desejos de vingança: O que será que levou a esse ato de extremo desespero por parte dos palestinos?

O início do caso atual em análise ocorreu em 1948 quando houve a primeira ação bélica contra uma aldeia de pastores palestino, Der Yassin, com a execução da maioria ou de todos os homens por parte de um comando israelense, tal como é documentado no filme de Neta Shosshani,, em que ela entrevista os já bem idosos, respeitáveis e amáveis senhores israelenses. Um deles de 95 anos, tem aparecido na mídia em trajes de combate, exortando os jovens militares e o exército israelense a destruírem e matarem a todos em Gaza.(5)  

Vários episódios dessa natureza estão bem documentados e acessíveis aos interessados. Foi o período de conquista da terra prometida, a Palestina e a expulsão de suas terras dos  habitantes palestinos. Logo veio a guerra aberta e mais de 750.000 palestinos foram removidos para os campos de refugiados, que até hoje habitam em Gaza, sem poderem voltar às suas casas. Hoje, naturalmente são muito mais numerosos. O que se seguiu chegou ao que hoje testemunhamos.

Como que a situação de Gaza chegou a esse ponto?

Além do bloqueio desumano infligido a Gaza, a cidade já foi bombardeada inúmeras vezes nos últimos anos. Em 2021 a capa do Times expos as fotos de 60 crianças mortas pelos bombardeios de Israel: ninguém pareceu se importar muito, ou mesmo sequer tomar conhecimento. Gaza tornou-se como uma panela de pressão tampada: ninguém sai, fogo alto. Explodiu a tampa! Do inferno saíram os demônios! A morte convoca a morte num infindável ciclo crescente de prazer e dor! Deus o senhor dos exércitos! Matanças bíblicas: Gaza cidade anátema?

Seguem abaixo testemunhos importantes para informar nosso pensamento e futuros desenvolvimentos dessa tragédia anunciada: 

Moshe Dayan,em abril 1956 num funeral de um colono israelense que fora morto por um guerrilheiro palestino, assim se manifestou diante de seus comandados. “Que hoje não culpemos os assassinos. Como condenar o ódio terrível que sentem contra nós? Já faz oito anos que eles vivem em campos de refugiados em Gaza, de onde podem ver que nós, bem diante de seus olhos, transformamos no nosso lar as terras e os vilarejos deles, o lugar que pertenciam a seus antepassados  . . .”. (6)

Avraham Shalom, head of Shin Bet 1980\1986, talvez tenha sido um dos mais influentes e poderosos militares em Israel, nesse período, assim ele testemunha sobre as forças de ocupação israelense “ . . it’s a brutal occupation force, similar to the germans of world war . . . . it’s a very negative trait that we acquired, I’m afraid to say, we’ve become cruel, to ourselves as well, but mainly to the occupied population, using the excuse of the war against terror. (7)

O que fazer?

Temos várias alternativas:

1 – Madeleine Albright , “quando questionada por Leslie Stahl, da rede de televisão CBS, sobre o cerco de meio milhão de crianças mortas em função do continuado bloqueio militar imposto pelos Estados Unidos ao Iraque, Madeleine Albright, então embaixadora norte-americana na ONU, não negou a acusação, admitindo ter sido “uma escolha difícil de fazer”. Mas justificou-a: “Achamos que era um preço que valia ser pago.” (em Zygmund Bauman – “Sobre a Dificuldade de Amar o Próximo” (8)

2 – Matar as indefesas famílias e crianças dos inimigos ou compreender o desespero dos oprimidos, e ser magnânimo, justo, ainda que sofrendo a violência dos desesperados? Pensemos do ponto de vista psicanalítico.

3 – Não são poucos os judeus e organizações judaicas que não só se opõe às políticas de Israel em relação à Palestina, mas também à ocupação ilegal de suas terras perante as leis internacionais. 

Atualmente, as manifestações contra o bombardeio punitivo de Gaza, o massacre de civis, a discriminação e tratamento desumano ao povo palestino são veementemente condenados por parte de cidadãos judeus, políticos, intelectuais e homens de cultura, intensamente presentes nas mídias sociais na internet, mas parece que pouco levados em conta por nossos conterrâneos brasileiros, inclusive psicanalistas e pela própria IPA.

4 – A possibilidade de diálogo depende da abertura ao conhecimento, da ida às fontes e ao estímulo aos testemunhos, não só históricos pós-guerra, como associados ao estabelecimento do Estado de Israel em terras habitadas pelos palestinos e à forma como vem sendo administrado por Israel a ocupação bélica da Palestina. 

5 – Acho sim, que poderemos sim, encontrar um caminho para o diálogo e o entendimento da tragédia decorrente da criação do Estado de Israel em área secularmente habitada, ainda assim, apesar disso, podemos e devemos encontrar uma via de convivência humanizada entre dois estados independentes: Palestina e Israel.

Um bom exemplo de escutar e conviver com o estrangeiro antagonista foi recentemente estabelecido pela Fundação Barenboim-Said através da música. O projeto de Daniel Barenboim e Edward Said – a West-Eastern Divan Orchestra pode ser tomado como modelo para ações futuras. Jovens palestinos e israelenses aprenderam como escutar uns aos outros e tocarem juntos, e quem sabe tocarem a vida juntos também. 

Que a Paz esteja conosco !

Referências das citações :

1 . Gonçalo M Tavares, “Breves Notas sobre Literatura-Bloom-Dicionário Literário”. Relógio D´Água, Lisboa,2018.

2 – Eizirik,  2007, tradução livre.” 2007 !

3 – Hannah Arendt, Epílogo de “Eichmann em Jerusalém”, citado por Alexandra Lucas Coelho, Folha de SP, 20 Outubro 2023

4 – Alexandra Lucas Coelho, Instagram:  Aí está o texto, as palavras dela que tornei minhas. 

5 – Filme Neta Shosshani. Doc Lisboa , 2017

6 – Moshe Dayan :  abril 1956

7 – Avraham Shalom, head of Shin Bet 1980\1986, you tube: “Avraham Shalom on Israel”.

8 –  Zygmund Bauman – “Sobre a Dificuldade de Amar o Próximo.”   Inclui o depoimento de Madeleine Albright, embaixadora norte-americana na ONU.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: Terror, Anátema, Israel, Judaísmo, Palestina, Gaza, Estrangeiro

Imagem: Performance de Marina Abramovic, foto em “Ser Contemporâneo em Totem e Tabu. Testemunhos”. Sayad Miguel, 2013

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:

https://www.facebook.com/100079222464939/posts/pfbid0TKZj5c9whLv3oS7bopJmZfERErzNqpBrPe45P3gZ8tAEBjpMs5JAuHRpbEVK7Rm3l/?mibextid=K8Wfd2

Tags: Anátema | Estrangeiro | Gaza | Israel | Judaísmo | Palestina | Terror
Share This