Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Três filhos judeus e uma libanesa, e um neto que é um neto*
Hemerson Ari Mendes (SPPel)
Colegas e leitores do Observatório Psicanalítico, tenho acompanhado todas as publicações e comentários. Além de ampliarem minha compreensão, apaziguam em parte algumas angústias e, ao mesmo tempo, trazem novas angústias e uma inevitável sensação de incompletude. O que não deixa de ser a melhor expressão da complexidade da situação. Atrevo-me a fazer o meu transbordante rabisco, impregnado de inquietudes e cheio de vazios.
Quando visitei Auschwitz e Birkenau, antes de me deparar com a cínica expressão “Arbeit macht frei” – “O trabalho liberta”, li no folder da versão inglesa uma frase que chamou a minha atenção: a experiência pode ser “disturbing”.
Antes dessa visita eu pensava que dominava a história do Holocausto. Pai de três filhos judeus – Marina, Matheus e Raphael -, convivia com famílias judias e suas histórias. Mas, havia um elemento afetivo que me bloqueava de sentir intimamente (ou mais profundamente) o que de fato foi o Holocausto. Não precisei chegar à câmara de gás, tampouco aos barracões de madeira – nos quais judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová entre outros foram aprisionados e assassinados -, para entender e sentir o porquê do “disturbing”.
Quando entrei em um dos grandes galpões que compunham o complexo e que hoje é um museu, e me deparei com vários brinquedos, sapatinhos, sandálias, roupas (…) de crianças; além de chumaços de cabelos encaracolados, vi meus filhos entrando nas câmaras de gás, só então passei para outro estágio do processo sensorial/afetivo/intelectual.
Não deveria ser preciso ter filhos judeus para sentir esta experiência como “disturbing”. Contudo, estímulos mais próximos ao umbigo são narcisicamente mais efetivos para acionar identificações/empatias. O nó na garganta, uma vontade de chorar e a lembrança obsessiva dos filhos acompanharam-me até a visita à câmara de gás.
Helena**, a quarta, tem ascendência libanesa, a avó, já um tanto aculturada, faz narrativas das alegres reuniões da “turcarada” na casa da sua avó, na qual comida, religião, política, negócios se misturavam entre sírio-libaneses, judeus e palestinos (…), num sincretismo, que se non è vero è bene trovato (ou mixtum).
Em Pelotas, como em boa parte do Brasil, todos convivem em harmonia. Têm laços de amizades, são parceiros comerciais e os filhos estudam nas mesmas escolas católicas ou leigas.
Nossos filhos podem/poderão estar em qualquer lado da fronteira: Raphael, metralhado na visita a um kibutz; Helena, atingida por um míssil em Beirute na reunião da família libanesa e Pedro, que é simplesmente neto, sem mais adjetivos, ou, se preferirem, que pode ser tudo, junto e misturado, morrer de sede/fome ao fugir do Norte para o Sul em uma Faixa qualquer.
Nenhuma reação que não esgote todos os riscos de vir a matar uma criança (não raro, se usa crianças para filhos de qualquer idade) é legítima e trará a paz. Não espero que o Hamas ou os assassinos de Yitzhak Rabin escutem, pensem e mudem; essa possibilidade não existe. Tampouco, que o governo de Israel deva ficar imobilizado e não reaja ou se defenda. Mas, sim, a maioria dos judeus/palestinos entende que a morte de crianças palestinas/judias (netos do avô), ou de qualquer origem, é imoral, não é inteligente, não é efetiva para trazer a paz aos seus.
O filicídio está na mitologia fundante da tradição judaico-cristã. Seja do deus*** (constructo base dos deuses de tantos outros povos) de Abraão (fusão de narrativas sobres diversos líderes de povos nômades) que o orienta deixar à Hagar, mãe de seu filho Ismael, levá-lo para o deserto, assim, abandonando-o (nesta mitologia, origem dos árabes) ou na submissão à ordem de que ele sacrificasse Isaque (origem do povo judeu). Na sequência da mitologia, o mesmo deus, de maneira “pedagógica”, na décima praga, sacrifica os primogênitos dos egípcios, para combater a ameaça aos filhos dos judeus. Não faltam outros exemplos; mas, para terminar, na transição das tradições, o deus-pai, que em sua “infinita bondade”, envia seu filho (origem do cristianismo) para sacrificar-se “por nós”.
Percebam, em todos os casos, os filicídios são naturalizados como atos de elogiável desprendimento.
O deus de Abraão, e de tantos outros, uma criação à imagem e necessidade da perseguição gerada pelos primitivos desamparos, foi nutrido e desenvolveu-se à sombra do perverso pai totêmico, assassinado mitologicamente na fundação da cultura e que, agora, consequentemente, condena aos filhos dos parricidas a se tornarem preventivos filicidas.
Não existirá paz estruturada sob os ditames de um deus/pais/governos/grupos no qual o filicídio não seja interditado. Em algum momento, a elaboração do filicídio deverá ser substituída pela ética da Mãe**** salomônica que renuncia a posse da maternidade para manter o filho vivo ou de um Pai**** continente, com capacidade de pensar, inseguro quanto a suas certezas/poderes.
*Todos são bem mais que isso.
**Apesar de a narrativa de que Helena é minha filha-enteada, há algum tempo, não existir na relação entre mim e ela; da mesma forma, que a expressão filho adotivo deveria ser abolida, filho é filho. Aqui, resolvi citar, pois é relevante para pensarmos que filho, com todas as implicações que isso envolve, é bem mais do que destinatário de parte da carga gênica. Assim, filhos, potencialmente, são todas as crianças. Da mesma forma, crianças são crianças, devem ser protegidas por todos os potenciais pais, ou seja, por todos.
***Evidentemente, eu sei que existem maneiras mais sofisticadas, menos literais, de se entender os diversos deuses. Temos versões menos vingativas, toscas; enfim, mais elaboradas; alguns, até aceitam a existência de outros ou têm inseguranças sobre se de fato são onipotentes. Aqui, propositalmente, o descrevi dentro da literalidade com a qual é aceita pela maioria que falam/agem em nome do suposto.
****Tenho profundo respeito pela religiosidade e fé das pessoas. O ateísmo quando se pensa superior intelectualmente, nada mais é que um espirro da arrogância; da mesma maneira, a religiosidade como mãe de uma suposta superior moral é apenas o soluço da hipocrisia.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: Israel, Palestina, Hamas, deus, filicídio
Imagem: Graffiti do artista Bansky, 2008. Cisjordânia.
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