Observatório Psicanalítico – OP 429/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

 

Pela ilusão dos inocentes

 

Daniel Delouya (SBPSP)

 

“Me explique, mãe, como um coração com dois quartos, sem área de proteção, pode conter e aguentar toda essa demolição” (bilhete de uma menina israelense)

Imagino que alguns já se defrontaram com o horror da morte diante dos olhos, com esse assalto desprevenido de difícil descrição.

Uma explosão na rua que acabo de atravessar, uma bicicleta lançada ao alto, corpos de meninos dilacerados sobre a calçada enquanto me preparo para tomar a condução para a universidade. A lanchonete que acabei de deixar explode e eu, trêmulo, assisto tudo a cem metros da catástrofe. Tudo isso em Jerusalém do fim dos anos setenta. E eu abraçando, fervoroso, a causa palestina, em nome da qual esses atos de violência continuam, ininterruptos, desde 1967 até hoje.

Na volta da escola, com 9 anos, um bombardeio, o início da Guerra de Seis Dias, minha alma voa com os pássaros, abandonando o corpo que anuncia a sua volta com os adultos, entre eles meu pai, que nos dirigem às trincheiras preparadas apressadamente dias antes para nos proteger das bombas lançadas por aviões da Jordânia perseguidos pelos nossos.

Aos 15 anos, numa noite tranquila do Dia do Perdão, em 1973, um agito estranho, carros do exército levam os reservistas para a fronteira. A notícia de morte nos pega desprevenidos, os egípcios e os sírios, com ataque massivo invadem o país e logo, aí sim, nos afogam no mar. Nos dias seguintes substituímos os homens nas lavouras, voltando para casa com o coração na mão, para enfrentarmos as possíveis notícias da morte de nossos irmãos no campo de batalha. À noite, novamente, dirigimo-nos para os hospitais, ajudando as equipes que carregam e cuidam dos feridos.

Imagino o que ocorre hoje em cada casa de ambas as partes do conflito.

Ontem foi o Dia das Crianças, dos inocentes! Será? Melanie Klein foi nossa mestra dos cenários, ao contrário de Freud, que foi o mestre das cenas. Klein desenha um mundo das tramas dos interesses, da posse, do domínio, da gana, dos enganos, de roubar, queimar, destruir, governar, revidar etc. Seus cenários retornam fielmente sob a pena dos enredos dos jornalistas, dos cientistas políticos e, sobretudo, dos progressistas, que, atingindo a percepção, a compreensão, se situam logo no lugar de quem enxerga a maldade no outro, não em si, o que seria a verdadeira posição depressiva.

Hoje, de um lado, são os israelenses e seus governantes com o interesse em se apossar de todos os territórios dos palestinos, oprimi-los, tirar deles todos os direitos de cidadãos. De outro, os palestinos que tentam sobreviver e usam o terror para minar essas intenções, através de atos de desespero, cruéis, desumanos. Os primeiros se aliam às grandes potências, EUA, China etc. e seus interesses de domínio do mundo; os segundos encontram apoio em outras potências contrárias, Rússia, Irã etc.

Estaremos, nós os instruídos e progressistas, do lado dos oprimidos e justificaremos os atos de desespero em face dos massacres massivos desferidos por seus inimigos potentes que não só mantêm a prisão da faixa de Gaza, cortes de água, luz, mas também os ataques aéreos e outros cenários históricos, crimes de guerra, com que me defrontei com vergonha e coração partido na escola: Chirbet Chize (1948), Dir Yassin (1948), Kivie (1953), entre outros, e Sabra e Shatila (1982), executados por terceiros e chancelados por comandantes israelenses.

Nós, juntos com outros, abrimos os livros, os jornais, ouvimos as análises inteligentes para expulsarmos todo o mal que acumulamos, obra da pulsão de morte, uma espécie de limpeza diária necessária, uma identificação projetiva exitosa para restaurarmos todo o bem e o humano de que dispomos. Os receptores dessa lixeira estão sempre aí para assumirem o mal e perpetuá-lo, afiando os meios para expandi-lo. Não que desacredite da veracidade dessas tramas interesseiras, maldosas. Ao contrário, tenho certeza que descrevem a realidade da dominação e das explorações estruturais e seus corolários, o machismo, o racismo assim como o antissemitismo estrutural.

Melanie Klein, essa grande mulher, nos mostra a que veio. A psicanalista coloca em relevo a nossa aptidão para o amor, a capacidade e a luta para resgatá-lo, o prazer para desfrutá-lo junto aos outros, mesmo se a integração dos mesmos (do amor e do prazer) nos defronta com a solidão, com certa perseguição que inquieta todo esse terreno frágil, delicado, incerto.

Assim, ela nos transporta de volta à Freud, às cenas do prazer e dos valores do viver, do sexual, da infância genuína, inocente. Aquilo que embrenha os nossos encontros no fim do dia com nossos queridos, ou mesmo durante o dia, nos corredores e elevadores, nas conversas com nossos colegas, na escuta, nos encontros dos rostos, dos corpos, dos olhos, dos beijos, dos machucados das crianças, de nossos pares. Os cafés da manhã, os planos de jantares com amigos, ou com um estranho em vista de uma nova história de amor, de sexo, de um novo negócio, de estudo, de debate, de viagens… E as festas, quando o corpo adquire os movimentos ao som da música e se excita com o corpo do outro, na promessa de contato, abraço, beijo, transa. Quando nos sentamos para brincar, ou assistimos ao drible de um jogador talentoso em direção ao gol esperado. Quando recebemos um novo ser, um bebê e deliciamo-nos com o esboço de um inusitado gesto que nos alegra.

Tudo isso exige paz, espaço do viver.

E quando esse espaço se deturpa, interrompido e invadido por violência desmedida, de chacina em festa, decapitação de bebês, idosos jogados num caminhão como se fossem sacos de batata, jovens ensanguentadas pós estupro, casas incendiadas?

As crianças, os jovens, não merecem as consequências desse jogo dos interesses dos adultos e seus governos, sejam eles atingidos direta ou indiretamente. Devemos gritar, daqui do Brasil: é o Dia das Crianças, deixem-nos brincar e brigar; lembrem-se, somos nós, as crianças, também em vocês, que trouxemos a vida para este planeta, por favor, nos ajudem a preservá-la!

Ouçam Freud.

Foi a vitória da Guerra dos Seis Dias o início da degradação moral do meu povo, não as aspirações sionistas dos judeus, nem a conclamação justa dos palestinos por um Estado soberano. A guerra se faz necessária em muitos casos. O Anwar Al Sadat soube aproveitá-la, trazendo a paz entre egípcios e israelenses. Os jordanianos o seguiram, tímidos, e ainda não completamente. Tenho a convicção, com Freud, que apenas uma personalidade forte, e não os jogos de forças e interesses, pode restaurar a vontade dos inocentes pela paz.

Os palestinos do Hamas foram no início desta nova guerra, como os egípcios em 1973, corajosos com o auxílio justo de seus aliados. Aproveitaram o cochilo arrogante e soberbo dos dirigentes israelenses, em sua negligência gritante da vigilância necessária tendo todos os meios sofisticados e a informação certeira para impedirem a invasão. Ao contrário dos egípcios, os mil integrantes do Hamas se empenharam logo em seu ofício de terroristas, evocando as piores atrocidades da História, desumanizando as causas justas dos palestinos.

Com Freud, novamente, tenho a fé que apenas um líder forte entre os palestinos, mais forte que um Arafat acovardado, que não soube aproveitar um dos melhores momentos da História, possa vir, como o saudoso Sadat, surpreender e embaraçar os israelenses com uma decente proposta de paz. Tenho certeza que haverá alguém à altura que possa recebê-los e assinar a tão esperada abertura para um novo tempo.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: Interesses, Terror, criança, Guerra, Paz

Imagem: publicada no Yednet journal israelense

https://www.ynet.co.il/news/article/bj3l4dw116?utm_source=ynet.app.ios&utm_term=bj3l4dw116&utm_campaign=general&utm_medium=social

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no facebook:

https://www.facebook.com/100079222464939/posts/pfbid02vR6ALYNrPc4uQbPF99E88C4BPhn7Ju67jyWLRojfEkqda59ZWyvgFJY6ppFSwgqtl/?mibextid=K8Wfd2

Tags: criança | guerra | Interesses | Paz | Terror
Share This