Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Às três pedras o que é das três pedras
Cristina de Macedo (SPRPE)
Existe – e existirá – uma ligação mais profunda que escapa ao olhar desprevenido daqueles que permanecem presos apenas ao visível ou à concretude das coisas. Entre o que enxergamos e a imaginação há um longo caminho a ser percorrido.
Nas minhas andanças pelo sertão, tenho encontrado muitos encantos feitos de simplicidade. Em Água Branca, sertão alagoano, segundo ponto mais alto do estado, ao pé de uma serra, pode-se admirar três pedras cor de rosa-choque, bem no centro do povoado, que recebeu dos seus moradores o nome de TRÊS PEDRAS e, para o bom nordestino que queira simplificar na sua forma de pronunciar o nome fica originalmente – “TRÊS PEDAS”.
A miragem das três encanta e inquieta. A ponto de me provocar, de imediato, algumas indagações. Quem fixou as pedras ali? E por quais motivos? Por que razão as pedras aceitaram ficar ali paradas observando o movimento de quem entra e sai da cidadela?
Lembrei do filme de Marguerite Duras, “As Mãos Negativas”, de 1979, que revela pinturas encontradas nas grutas magdalenienses na Europa do Sul Atlântico. O curta é atravessado pelo som de um violino cru que arde ao vibrar de sua música, e tem, ainda, o mar e uma Paris proletária que amanhece. Duras nos presenteia com o gesto fundador da palavra, da palavra ainda não inventada. Exibindo o contorno das mãos sobre a pedra da gruta na falésia, diz Duras:
“O homem veio sozinho na gruta de frente para o oceano. Todas as mãos têm o mesmo tamanho, ele estava sozinho. O homem sozinho olhou no barulho do mar a imensidão das coisas. E ele gritou: Eu sou aquele que chama, que gritava a 30 mil anos. Eu amarei a quem quer que escute o meu grito.” O grito dessas palavras viajou no tempo e trouxe a possibilidade da voz.
Foi por isso que conversando com Erivaldo, morador de “Três Pedras”, ele esclarece que a necessidade de se conversar, de se aglomerar em um lugar neutro, fez com que os moradores tomassem a iniciativa de assentarem três pedras juntinhas, de maneira que as pessoas pudessem prosear assim que o sol pensasse em descansar.
Essa busca pela troca de ideias, um olhar, um sonho, uma cor, ou o falar do que agonia, do que afaga, do que endurece e enternece, é extremamente humano.
Vi Freud sentado em uma das pedras róseas, conversando com seus amigos e interlocutores ao tentar compreender a si e ao mundo ao seu redor.
Esse ato lhe era bastante familiar, visto que o mesmo trocava em cartas suas confidências pessoais e profissionais, numa atitude de dar importância ao diálogo.
Quem vai dizer melhor sobre essa proeza do pai da Psicanálise é Blanchot no seu livro “A conversa Infinita 2”: “Que confiança no poder libertador da linguagem. Que virtude concedida à relação mais simples: um homem que fala e um homem que escuta.”
Continuo no povoado “Três Pedras”, com suas árvores frondosas e um clima ameno, de olhos para um vale neblinado, nesse momento, saboreando a culinária da Dora que tanto cozinha como nos ensina a dançar, e também Eliane, sua filha, com extrema delicadeza em nos servir.
Há 30 mil anos com as mãos pintadas pelo homem na caverna, e há 40 anos, aqui no povoado de “Três Pedras”, onde podemos ver a marca da alteridade. A possibilidade de se ver através do outro ainda existe e está aí simbolizada nas três pedras cor de rosa-choque. Sim, são registros da memória guardados nas pedras. O passado se ergue transfigurado em beleza e em tudo que se ausentou e se presentificou, o que se perdeu e o que se achou.
Estamos diante de palavras aladas, acariciadas pela brisa sertaneja, que retornam à Terra num devir infinito, tal qual o vestígio das mãos espalmadas na pedra da falésia.
E o que é das três pedras?
É a exuberância do rosa esculpido em carga humana. É o mito fundador da Palavra e do encontro entre os seres.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave Três Pedras, Sertão, Palavra, Carga humana, Voz
Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no facebook: