Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Nosso racismo e o desmentido
Alice Lewcowicz (SPPA), Carla Bellodi (SBPRP), Cybelli M Labate (SBPRP), Elizabeth Cimenti (SPPA), Josiane B Oliveira (SBPRP), Josimara M F de Souza (SBPRP), Luciana Mian (SBPRP), Mauro C Balieiro (SBPRP), Sérgio Lewcowicz (SPPA)
No final de abril deste ano, participando do V Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa, vivemos uma travessia do corpo e da alma.
Pela primeira vez em nossos congressos, havia um número significativo de participantes negros: novas e potentes vozes se ergueram e, em cada atividade, expunham a racialização às pessoas: de um lado a branquitude com uma necessidade acentuada de pegar o microfone e falar de si mesma em longas falas autorreferentes; a forma de apresentar os casos de pacientes negros sem considerar a história da colonização, transformando seus sintomas em patologias individuais; uma dificuldade em reconhecer a importância de intelectuais negros e muitos outros que denunciavam o espanto em identificar a “escravidão” dinâmica e não localizada apenas nos séculos passados. De outro lado, as vozes negras, que captavam o irrepresentável, buscavam pensadores para pensá-lo e alguns colegas, como Ignácio Paim Filho, Wânia Cidade, Sônia Beatriz, iam dando formas e palavras para dores insuportáveis que são produzidas nas relações com nossas instituições psicanalíticas.
Vivemos muitos incômodos e desconfortos, satisfações amplas e identificações gratificantes. O choro, a fragilidade branca, os “desejos de reparação”, os sentimentos de responsabilização, desejo de não ser incluído no lugar de colonizadores, as ambivalências próprias da multirracialidade brasileira, tudo isso nos hipnotizava e nos mantinha num transe desacomodado. Emergia a branquitude, emergia a negritude.
O grupo Sankofa da SBPRP levou um trabalho sobre o Programa Sankofa de ação afirmativa na Instituição Psicanalítica e uma de nós, a Carla, levou um trabalho com o título “O avesso da Psicanálise”, uma referência ao livro “O avesso da pele” de Jeferson Tenório. Não imaginávamos que viveríamos experiências que nos virariam do avesso.
A psicanálise e nós, psicanalistas, precisamos reformular nossos pontos de vista: acreditamos demais em nossas boas intenções. Nosso grupo de ações e estudos é multirracial. Temos trocas que incluem tanto o pensamento/sentimento negro quanto o pensamento/sentimento branco. Estamos em constantes revisões, ampliações e ponderações.
Ferenczi, em sua teoria sobre o trauma, sugere que é no segundo tempo do trauma que a violência sofrida pelo sujeito irá se consumar como traumática. É o tempo do desmentido, quando a dor relatada não é validada pelo outro – a dor é desmentida e desta maneira ocorre a retraumatização do sujeito. Se quando nos deparamos com a denúncia da dor provocada pelo racismo estrutural, enunciada por psicanalistas negros, e nós, analistas, não podemos viver na pele o reconhecimento da nossa responsabilidade enquanto grupo, o que se passa é o desmentido. Analistas brancos ou analistas negros são colocados diante da dor para reconhecê-la, validá-la, ampliá-la. Essa experiência dolorosa e disruptiva do desmentido indica que falhamos como psicanalistas e como grupo. Transformar denúncias de racismo em “situações de polarização” ou dificuldades de convívio entre diferentes, faz parte desse desmentido, pois pretende transformar em simétrica uma relação historicamente de dominação.
Falhamos todos neste segundo tempo do testemunho, promovendo o desmentido e causando um grande impacto sobre os processos em estado de desenvolvimento. Se os psicanalistas brancos desacreditam a experiência do racismo denunciada pelos colegas negros e confirmada pelos corpos negros ali presentes, todo um conjunto de estados mentais se esvai diante do “poder” do testemunho e a fragilidade branca mostra a que veio: restabelecer o antigo equilíbrio de forças. A situação racista em que os brancos se acham os donos da palavra, do conhecimento e da verdade se restabelece.
Assim, viramos a roupa do lado “certo” e retornamos para os nossos consultórios, acreditando em nossas boas intenções e em nossa psicanálise bem humana, no clube exclusivo da humanidade, como diria Ailton Krenak. Mantemo-nos confortáveis, instalados em nosso “clube exclusivo” de psicanalistas brancos.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas; Vidas Negras Importam
Palavras-chave: Racismo, Branquitude, Desmentido, Trauma, Racialização
Imagem: Foto “Garganta” de Vanderlei de Souza Jr, da série “Coser em ouro” (2023)
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