Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A psicanálise em (de)formação e a formação que não forma
Ricardo Trinca (SBPSP)
Recentemente tive o prazer de publicar, neste necessário espaço do OP, uma pequena comunicação sobre a ausência da política e da ética na formação psicanalítica. Entre as ideias desenvolvidas, considerava que a ausência de um pensamento sobre política e ética é parte de uma formação, ou seja, um modo de formar analistas pela negativa, e não simplesmente uma deficiência dos institutos. Essa maneira de formar analistas que não pensam sobre tais assuntos é consoante com a visão equivocada que considera não existir relação entre política, ética e psicanálise.
Hoje pretendo dar continuidade ao tema da formação, mas de outro ponto de vista: sobre a formação como um processo interminável de tensão, no qual é impossível se formar.
Sabemos que no tradicional processo de formação, o pretendente se inscreve em um instituto e faz seu caminho regulamentar, geralmente baseado no tripé da análise pessoal, seminários clínicos, teóricos e supervisão. Após a execução desses requisitos e concluído os relatórios de atendimento, quando considerado apto, o pretendente se forma psicanalista. Nesse processo se executa certo procedimento, mas quando se atinge o objetivo e o analista é considerado membro da Sociedade correspondente, se verifica que, de fato, não se conclui a formação. Isso porque a formação do analista não se conclui, ela é contínua e inquietante. Mas há um pressuposto, apesar disso, de que é possível formar, e que a função executiva do instituto teria se encerrado.
Há uma teia simbólica, representada pelos Institutos, da qual o pretendente quer fazer parte em um espaço de tempo limitado; e, por isso, o processo pode ser de um puro alinhamento, em que há pouca margem para o surgimento das características pessoais e críticas dos pretendentes a formação, de sua autonomia.
Mas temos a convicção de que a psicanálise tem uma estreita relação com a autonomia e a liberdade. Embora ancorada em alinhamentos teóricos e metodológicos, há uma contínua busca por autonomia e liberdade de pensar, pois apenas assim podemos tentar abarcar o inabarcável ou conhecer algo do desconhecido, formulando hipóteses novas, construindo teorias, muitas das quais são provisórias. Precisamos, por isso, considerar que a psicanálise está em devir, ou seja, em (de)formação.
Talvez essa noção implique numa mudança de perspectiva sobre a concepção de que há um processo de formação que se finaliza e uma psicanálise que esteja formada. E se realmente levarmos essa ideia a sério, perguntaremos por uma psicanálise que, incompleta e indeterminada, caminha para a necessária descoberta de uma epistemologia que inclua o antirracismo, as perspectivas trans e a luta contra o autoritarismo (dentro e fora da sala de análise), como um devir necessário e que considera a realidade.
No dia 18 de março de 2023, o Jornal de Psicanálise promoveu, em virtude do lançamento do seu número 103, um debate no auditório da SBPSP, para discutir sobre a (de)formação da psicanálise e a formação do analista. Esse debate teve como mote, além dos trabalhos presentes naquele número, os relatórios do Congresso interno de Atibaia (2007), promovidos pela SBPSP nessa mesma época, e que foram nele publicados, além da questão da análise pessoal no processo de formação. Foi um debate realmente interessante, no qual quatro membros filiados ao Instituto Durval Marcondes puderam fazer considerações sobre seus processos de análise pessoal e relacioná-los com as leituras dos relatórios de Atibaia. Precisaríamos de muitas linhas para descrever a importância dessas costuras e discussões. Mas o fundamental, do meu ponto de vista, foi observar que certas questões, quando não são coletivamente elaboradas, inevitavelmente retornam. E o que retorna, nesse caso, é o problema do que consideramos ser a formação.
Os analistas que apresentaram seus trabalhos, ainda participantes do processo de formação, revelaram que a tensão entre alinhamento e autonomia, quando mantida, é uma fonte de criatividade e potência emergente. Os trabalhos apresentados mostraram que manter um pé na tradição e outro fora dela é a fórmula para uma formação que aceite uma psicanálise que está em (de)formação. Nenhum dos participantes presentes defendeu um puro alinhamento ao modelo atual, e puderam criativamente pensar em suas análises de formação de uma maneira aberta e questionadora.
Mas o que é, afinal, uma psicanálise em (de)formação? Claro que se trata de uma pergunta sem resposta, e a equipe editorial, encabeçada pela editora Berta Azevedo, sabia bem disso. No entanto o objetivo era explicitar o caráter não só inacabado, mas necessariamente demandante da psicanálise, que não cessa de se ampliar, e que nos obriga a fazer torções, inclusões, a reconsiderar e desformar continuamente concepções sobre sua forma. Pensar sobre a quantidade de vezes por semana necessários para análises de formação foi uma maneira de trazer o problema de uma psicanálise que se (de)forma e, portanto, exige que nós também nos deformemos.
Para os leitores do Jornal de Psicanálise o efeito dessa explicitação têm sido desacomodar. Os últimos números do JP foram justamente dedicados a perseguir desacomodações, por meio da realização de torções. “Psicanálise em (de)formação” (número 103) apenas explicita esse movimento difícil, mas necessário, de buscar nas margens o que é central. E por meio desse método, sentir o incômodo do desassossego, considerar como os colegas pensam (alinhamento) e por fim refletir intimamente (autonomia), mostra-se um processo natural de consideração pela realidade. A tensão entre alinhamento e autonomia é crucial, porque sem ela qualquer produção pode acabar sendo ou solipsista, sem dialogar com os pares, ou repetitiva e incapaz de oferecer alguma nova potência criativa.
Quando a prática psicanalítica se mantém como um continente insaturado, disponível para inflexões, desdobramentos e transformações, quando permanece em devir, ou em (de)formação, ela é receptiva ao novo; e o novo sempre desacomoda. Esta não é uma ideia nova, mas merece ser enfatizada; pois se a psicanálise não possuísse essa condição, inerente a sua constituição, a prática seria repetitiva e seguiria um modelo reificado. Somente nesse sentido a ideia de formação poderia ser de execução, porque nesse caso, a forma (psicanálise) e o conteúdo (psicanalista) poderiam ser totalmente correspondentes. Mas, não há um continente que dê forma para a potência emergente dela, a não ser que esse continente seja mutável e principalmente maleável, como devemos ser.
A psicanálise em (de)formação provoca ao cutucar-nos para a necessidade de uma formação continuada, ininterrupta, por meio de uma aposta em ambientes reflexivos e críticos que precisam ser mantidos para suportar a tensão criada entre a necessidade de estar alinhado e o desejo de ter uma total liberdade de pensar e fazer.
Pessoalmente acho que seria interessante considerar que ser psicanalista não é obter um título, válido para a vida, mas uma outorga, um voto de confiança, uma aposta que a transmissão do fazer psicanalítico aconteça. Para isso o analista, em qualquer tempo, deverá estar alinhado a certa prática e certa ética, e questionando sobre ela. E essa outorga deveria existir apenas para quem consegue manter um interesse genuíno no exercício dessa atividade inquietante, com a qual é necessário sempre restabelecer os votos e suportar o inacabado que é sua formação. Assim como a psicanálise não estará nunca inteiramente formada, ao psicanalista é cobrada a capacidade de suportar sua impossibilidade de formação. Portanto, deformemos; talvez seja a nossa mais nobre aptidão.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: Psicanálise, formação, análise pessoal, Instituto de formação
Imagem: Paul Klee, burdened children, 1930. Tate Gallery
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