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Novas drogas para emagrecer: mentalidade de dieta e o controle social do corpo
Luciana Saddi (SBPSP e fundadora do Grupo Corpo e Cultura) e Natália Vignoli (nutricionista do Grupo Corpo e Cultura)
Nas últimas décadas, a relação com a comida passou por significativa perturbação. Cada vez mais comemos de forma “externalizada”, e o complexo trabalho de comer tem ficado a cargo das dietas. As dietas fazem com que algo bastante intrincado pareça simples, reduzindo e empobrecendo o que o ato de comer exige de cada um de nós. Prejudicam e interferem na fina conexão sujeito/corpo/mundo tão necessária à percepção e ao atendimento do fluxo de necessidades e desejos que nos habitam.
Na prática, é como se as dietas expulsassem o corpo – junto de seus inúmeros sinais – do homem. Sob essa perspectiva, o ato de comer tornou-se desconectado dos sinais de fome e saciedade que deveriam regulá-lo. Perdemos capacidades tais quais saborear os alimentos, saber quando parar de comer, quando se tem fome, escolher os alimentos por livre e espontânea vontade (e com prazer) para os momentos de fome. O ato de comer vem cada vez mais intermediado por informações científicas ou midiáticas que procuram impor padrões disciplinadores – e modismos –, sem levar em conta a diversidade e a singularidade das pessoas, de seus apetites e paladares, além de interesses econômicos e questões culturais.
O mal-estar que acompanha a experiência com a alimentação e com o corpo é chamado de mentalidade de dieta. Decorre do controle social ampliado e capilarizado que multiplica ingerências sobre o cotidiano mais elementar, estabelecendo ideais impossíveis de serem alcançados. Resultam em alienação, sofrimento e confusão – como se todas as formas de comer estivessem erradas.
O aumento, na clínica psicanalítica, dos problemas alimentares e do sofrimento com o corpo e com o ato de comer nos últimos 50 anos está diretamente relacionado ao crescimento e capilarização da mentalidade de dieta. Na maior parte das vezes os transtornos alimentares se iniciam e coincidem com práticas de dieta e privação alimentar.
O engordamento da população, aumento da compulsão alimentar e da compulsão por dieta não costuma ser tratado ou compreendido de forma complexa – e parece não existir interesse nisso. Aliás, a lógica capitalista de alta produtividade estimula o consumo de alimentos ultraprocessados, reduz o tempo de refeição e estimula a população ao consumo de produtos rápidos e de fácil preparo, tudo para que não se “desperdice tempo” comendo.
Ao mesmo tempo, a imposição de padrões de beleza, parâmetros de saúde questionáveis, estereótipos de magreza e maneiras adequadas de comer interessa a indústria da saúde, que fatura três bilhões de dólares por ano só nos EUA.
Nesse sentido, os medicamentos que prometem fazer da dieta uma prática “fácil e sustentável” ocupam grande espaço nos consultórios médicos e parecem fáceis alternativas para quem ainda busca “comer e ser como se deve”.
A indústria farmacêutica busca aprimorar suas drogas e a cada ano, de fato, novos avanços são feitos. Inicialmente eram as anfetaminas, nos anos 60, possibilitando a perda de peso de inúmeras pessoas, mas às custas de considerável alteração no funcionamento do sistema nervoso central, além de possíveis consequências metabólicas. Os medicamentos seguintes não escaparam da ação hipotalâmica e, consequentemente, com efeitos colaterais que abrangiam desde o reganho de peso e piora dos exames clínicos até importantes alterações de humor.
Atualmente, a caneta queridinha do momento vem com a proposta de ser um análogo ao GLP-1, substância produzida no intestino na presença de alimentos. Sua ação está relacionada ao estímulo para insulina, consequente sensação de saciedade e retardo no esvaziamento gástrico. Inicialmente, o medicamento foi proposto para o uso bem-sucedido em pessoas com Diabetes mellitus mas acabou ganhando fama na prescrição “off label” visando o emagrecimento. Ao iniciar a aplicação do medicamento, o indivíduo passa a comer até 25% menos do que estava habituado e permanece com a sensação de saciedade, ou seja, se antes a dieta impunha sofrimento ao negligenciar os sinais internos de fome e saciedade, agora existe uma maneira de silenciar a percepção desses fatores.
Essa é, de fato, uma alternativa mais segura do que as antigas opções de manejo de peso, uma vez que as novas drogas não têm atuação nervosa. O estudo mais famoso e longo com o medicamento pôde comprovar redução de peso maior no grupo controle do que o grupo placebo e consequentes melhoras no perfil cardiometabólico (glicose sanguínea, pressão arterial e perfil lipídico), contudo, ao descontinuar o medicamento, ocorre o reganho de 2/3 do peso e o retorno dos problemas metabólicos iniciais.
Portanto, continua a ser de suma importância enfrentar os principais pontos do comer perturbado: resgatar os sinais de fome e saciedade, o prazer com a comida, a escolha autônoma dos alimentos para cada momento de fome. Sensibilizar o paladar, conectar-se com a própria digestão, escutar o ritmo do corpo. Comer tendo os sinais internos como guias, em profunda conexão consigo mesmo, diminui a perturbação do comer. Conectar-se às próprias emoções, com um vasto mundo interno que, em geral, não é percebido, significa realizar trabalho de autonomia pessoal, com a vantagem de reduzir os episódios de compulsão e aumentar autoconfiança. No lugar de procurar controlar os impulsos, melhor se conhecer e diminuir a privação que invariavelmente leva à compulsão. Afinal, abusamos mais das comidas ditas proibidas.
É trabalhoso sair de um processo de alienação. Dietas frustradas, ganhos de peso excessivos, episódios de compulsão desagradáveis se acumulam na memória, se entranham na autoestima e imprimem marca de autodesvalorização e incompetência. Por fim, é estabelecido um círculo vicioso marcado por permanente mal-estar com o corpo e com a comida.
É possível aliar ao trabalho acima descrito às novas drogas, principalmente se levarmos em consideração as possíveis alterações advindas do efeito sanfona, da prática de dietas e até mesmo do intenso ganho de peso, como redução do metabolismo, desconexão dos sinais de fome e saciedade, além de alteração no perfil glicêmico e lipídico. Alguns indivíduos podem ser beneficiados com o uso das novas drogas desde que combinadas com uma mudança do estilo de vida.
A perda de 5% a 15% do peso corporal é considerada suficiente para a melhora cardiometabólica, e o paciente pode, após a descontinuidade do tratamento, seguir com a manutenção do estilo de vida saudável, mas sabendo que, ao interromper o medicamento, a sensação de saciedade reduzirá e a fome irá aumentar. Nesse sentido, do ponto de vista da nutrição, o enfoque em qualidade de vida sem o uso de medicamento pode trazer o mesmo resultado com a probabilidade de menor reganho de peso.
Autoconhecimento e autonomia
Dos inúmeros males causados pela mentalidade de dieta, o constante ódio voltado contra si e contra o próprio corpo talvez seja o mais calado sintoma entre nós. Revestido de preocupações estéticas e considerações sobre a saúde, não se revela facilmente – capturado pela gordofobia e somado aos preconceitos que rondam a sociedade, podem deprimir ainda mais indivíduos que se sentem fora dos padrões.
A experiência clínica ensina que engordar ou emagrecer pode estar ligado à necessidade de se esconder, se omitir e delegar ao corpo uma tarefa que ainda não pode ser consolidada pelo Eu. Corpo e forma simbolicamente transmitem sinais que não foram processados, sequer compreendidos. No entanto, médicos e profissionais da saúde estão tão preocupados em engordar ou emagrecer pessoas que não se perguntam qual a função desses sintomas na economia psíquica dos sujeitos. Consideramos que pode haver grande interesse em mantê-los; significam proteção contra a sexualidade e contra investidas sexuais, por exemplo. Trazem o signo do protesto contra o establishment, contra o controle dos corpos exercido por mães, famílias e pela sociedade. Os significados da gordura e da magreza, do comer excessivo e da fobia à gordura precisam ser melhor conhecidos e investigados na clínica, tendo em vista que sofrimentos psíquicos se escondem sob problemáticas concretas – por vezes obsessivas – com o peso, com a seleção de alimentos e com o contorno corporal. Se apresentam sob as mais diversas vestes. Entretanto, à medida que o trabalho analítico evolui, os sofrimentos se deslocam da concretude do peso e formas corporais para questões emocionais complexas, que se somam e demandam criação de recursos psíquicos para serem enfrentadas.
Diante da complexidade abordada anteriormente, que trata dos problemas psicomecânicos e psicodinâmicos da alimentação, podemos afirmar que os mais atuais medicamentos para emagrecer, como Ozempic e Wegovy, trazem esperança de tratamento mais eficaz a quem precisa perder peso? Ou são mais uma promessa vã com lucros extraordinários para a indústria farmacêutica? Nossa experiência clínica indica que o autoconhecimento é a ferramenta fundamental para abordar os excessos, além de compulsões e problemas alimentares. Outros aportes não deveriam dispensar o trabalho psíquico.
No início dos anos 70 do século 20, a psicanalista e feminista Susie Orbach contribuiu com obra fundamental para compreensão da gordura, do controle social do corpo e tratamento da compulsão alimentar – publicado sob um título contundente, “Gordura é uma questão feminista”, a obra permanece absolutamente atual. Ao considerar a alienação gerada pela mentalidade de dieta, Orbach desenvolveu uma série de técnicas analíticas com o objetivo de recuperar a autonomia alimentar.
Pode-se concluir, assim, que a psicanálise, munida de pensamento crítico, ainda tem muito a conhecer e explorar nesse campo.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chaves: Mentalidade de dieta, compulsão alimentar, sinais de fome e saciedade, alienação, psicomencânica, psicodinâmica da alimentação e autonomia.
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