Observatório Psicanalítico – OP 402/2023

Observatório Psicanalítico – OP 402/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

A psicanálise diante de um mundo desumanizado

José Alberto Zusman – SPRJ

Tenho acompanhado com grande interesse e fascínio nossa entrada enquanto psicanalistas nos debates políticos que perturbam, horrorizam e pervertem os pilares do nosso processo civilizatório e humano. Há muito que nos mantínhamos distanciados dessa discussão como se assim preservássemos a suposta neutralidade clínica proposta por Freud. 

Sabemos hoje que se nem na clínica isso é possível muito menos o é no campo social da história que vivemos e que nos constitui. Somos humanos, e nosso espanto e nossa dor, assim como nossos sentimentos de amor e carinho, orientam o nosso caminho pessoal e profissional. Temos obrigação de ajudar quem nos procura para tratamento, como podemos e devemos ir para além dos nossos consultórios. 

Temos opiniões relevantes e faz parte da nossa obrigação profissional dividi-las com o conjunto social que tece e organiza a nossa essência. Isso em muito tem sido ajudado pelo incessante trabalho desenvolvido pelo Observatório Psicanalítico (OP). 

Precisamos dessa voz e de muitas outras, principalmente quando a democracia e as liberdades individuais e coletivas estão sob forte ameaça. A sociedade, talvez como em nenhum outro momento, parece vir perdendo a noção do que entende ser melhor para o seu próprio desenvolvimento saudável. Poderia agora ser interpelado sobre o que chamo de saudável. Explico: quando escolas são invadidas  e crianças inocentes são mortas por pessoas mentalmente perturbadas, mas que acreditam estar agindo corretamente, vemos ameaçadas as nossas origens, o verdadeiro berço da nossa civilização. Quando crianças são eliminadas, morre o nosso futuro e/ou se instala nos sobreviventes um tipo de medo que abala qualquer chance de pensamento livre e autônomo. 

E o que falar dos afetos? Como psicanalistas também corremos grave risco. Afinal, sem liberdade não há psicanálise. Não é uma mera luta entre direita e esquerda como ocorreu no passado. É muito pior. Agora o cenário é muito mais complexo. Perdemos as ideologias. Nosso poeta Cazuza, em uma de suas belas e ácidas canções, dizia que precisava de uma ideologia para sobreviver. Seria até bom se pudéssemos nos agarrar a uma ideologia, mas elas andam em falta. Agora é só o vazio sem sentido. Hoje há uma mera brutal luta do poder pelo poder. Inclusive pelo poder da verdade. 

São os fatos contra as “fake news”. De tal ordem que chegamos a ter o nosso teste de realidade ameaçado. Verdadeiro e falso caminham tão lado a lado que talvez, progressivamente, não saibamos dizer mais qual é qual. Uma verdadeira invasão psicótica que assola o mundo dito civilizado. A psicotização invade o mundo com uma tal força que assistimos horrorizados uma fragmentação dos vínculos associativos das ideias e dos afetos. O amor se dissolve em ódio que se dissolve em nada. Mais ainda, há a perigosa formação de uma lógica perversa cada vez mais distante dos valores da realidade civilizada assim como sempre a entendemos. Estamos, como seres humanos, vivendo um violento caminho de involução e intolerância. 

A cada novo momento, vemos os bárbaros exemplos da loucura indo desde os ataques ilógicos e terrivelmente cruéis a pequenas crianças à proliferação de guerras sem sentido que ceifam a vida de milhares. 

Corremos o risco, de tão numerosos que são esses desumanizados eventos, de tratá-los de forma banalizada, como sugeriu Hanna Arendt no passado. Eu sinceramente espero que não! Contudo, estamos, como povo, muito piores do que já o fomos. É o narcisismo às pequenas diferenças eliminando, todo dia, mais um pedaço de nós mesmos e do nosso futuro. 

A psicanálise nunca foi tão necessária no mundo. Cabe a nós psicanalistas mostrarmos união, compaixão e tolerância em um mundo ameaçado por fragmentações e destruições de todas e das mais bárbaras formas. Acredito que precisamos, acima de tudo, não sermos analistas neutros e mostrarmos publicamente a nossa mais profunda indignação.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade; Instituições Psicanalíticas 

Palavras chaves: psicanálise,  desumanização, abandono da neutralidade, fragmentação de vínculos, compaixão, processo civilizatório.

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:

https://www.facebook.com/100079222464939/posts/pfbid02c3LzPqiGGrpkmoqXhZ3tvTvyAaERdqGRy5faL1MLFjFFkDZ89HHtc39VwvcJPXmyl/?d=w&mibextid=qC1gEa

Tags: abandono da neutralidade | compaixão | desumanização | fragmentação de vínculos | processo civilizatório | Psicanálise
Share This