Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Meu Caro Chico
Vanessa Figueiredo Corrêa- SBPSP e GEP de São José do Rio Preto e Região
Meu caro amigo, Chico Buarque, primeiro quero te parabenizar por finalmente receber, em abril de 2023, pelas mãos do presidente Lula, o Prêmio Camões com o qual você foi consagrado em 2019, e na ocasião “você sabe quem” se recusou a te entregar.
Aqui me desvio da tentação de transformar minha carta em um extenso tratado sobre a inveja porque, para mim, quem não te ama só pode ser totalmente invejoso. Ao invés disso, vou me dedicar a falar sobre gratidão e o que considero como o representante final da gratidão: o amor.
A segunda tentação da qual preciso me desvencilhar é a de só encarrilhar citações suas para me referir a você mesmo. Não quero te mostrar o quanto te sei de cor, mas no exercício do meu amor, pretendo te mostrar que teu trabalho me enche de mim mesma e me permite arriscar na ousada missão de te oferecer minhas próprias palavras.
No ofício de psicanalista, assim como no teu, a palavra é pão, navalha, sangue, carne, é respiração boca a boca, tijolo, bisturi, leite do peito mirrado, é veneno que se bebido menos vira remédio (será?), remédio, que tédio. A palavra é uma vírgula até a próxima sessão, e depois, continuamosnasemanaquevemoquen
Chico, posso te dar um abraço por toda a minha vida? A primeira vez que te encontrei foi no meu livro da quinta série. Eu fiquei maluca quando li “Construção”, coisa viva dentro daquele ano chato e frio, de pais se separando e meus peitos de mamilos doloridos começando a crescer. Depois, passei o resto do tempo catando a poesia que entornas no chão e até hoje estou hiperbólica olhando as vitrines das livrarias, com as garras afiadas, pronta para disputar um último volume do teu romance com um autógrafo imaginário. Então eu sinto ciúmes quando te citam só para enfeitar os trabalhos, sem fazer as devidas amarrações, e assim te negam a cadeira central na mesa.
Mas talvez você não se importasse em ficar solto, sem amarrações, sentado na mesa ao lado, namorando as tuas Carolinas e Bárbaras, bebendo uma cerveja e olhando sem muito interesse para a confusão de línguas que se passa na terra dos herdeiros de Freud.
Percebe, Chico, estou vingativa, nostálgica e com medo, por isso te cito e te traio, amor total é assim: não te entrego nada do que prometi, só meu embaraço. Será que não haverá mais livrarias? Não haverá mais Chicos? O Elon Musk vai acabar com a poesia? Claro que não vai acontecer nada disso, né? Porque o amor é algo humano e será preservado e você o garante, Freud também o garante, embora vocês nunca tenham prometido. Aliás, qual foi o teu contrato com a humanidade? Você nasceu e um anjo sacana disse: Vai, Chico, levar um pouco de beleza para essa língua tão maltratada?
O mundo passa mesmo por crises e transformações, isso é natural, você também ganhou o primeiro festival tão jovem e se tornou um fenômeno, sem planejar, sem preparo, sem proteção; deve ter tido tantas crises e dificuldades, imagino que não haja mãe suficiente que te caiba e por isso você continua escrevendo, escrevendo, que bom.
Pois veja que maldade, talvez eu queira te ver sofrendo para que você tenha necessidade de continuar me explicando o mundo. A gente só escreve de verdade quando sofre? Imagino que você vá me responder que não, mas eu não vou mesmo acreditar, vou continuar com a minha tese radical de que ninguém gasta a vida escrevendo, cantando, tocando, pintando ou analisando se não for para aplacar a dor da própria orfandade.
Então, caro amigo, te nego a minha última gota de leite, vou guardá-la para mim mesma, tenho sempre fome e sede. Ou, quem sabe, posso te dar mais tarde, quando você me oferecer mais uma música ou mais um romance genial.
Da sempre tua,
Vanessa
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: Chico Buarque, Roda Viva, Psicanálise, Arte, Gratidão, Amor
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