Observatório Psicanalítico – OP 388/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

O PRÊMIO E A VIDA… COMO ELA É

Ney Marinho (SBPRJ)

(Páscoa,2023)

Agradeço ao OP a oportunidade de compartilhar com os colegas a alegria e responsabilidade de ter recebido um inesperado prêmio por nossa associação internacional, através do Comitê contra a Discriminação, o Preconceito e o Racismo, cujo chair é o nosso experiente companheiro Abel Fainstein (APA). 

O trabalho premiado, realizado em parceria com Lucia Palazzo, trata da implantação do Programa de Acesso Ampliado à Formação Psicanalítica no Instituto da SBPRJ. Minha alegria é maior porque compartilhamos o prêmio com os colegas gaúchos do UBUNTU, que desenvolvem projeto no mesmo sentido: inclusão dos tradicionalmente excluídos de nosso convívio. Refiro-me, sobretudo, aos afrodescendentes, que sabemos agora ser a maioria de nosso povo: segundo o IBGE, 56% da população brasileira! A eles se associam os indígenas – reduzidos a 10% da população originária, segundo alguns antropólogos (comunicação pessoal do Prof. Carlos Moreira, um saudoso companheiro de Darcy Ribeiro). 

O nosso Programa contempla também os refugiados, problema de gravidade não devidamente avaliada. Talvez muitos não saibam que alguns de nossos maiores intelectuais foram apátridas no exílio, durante a ditadura militar, assim como foi constrangedora a condição de refugiada de Marie Langer, no Uruguai, antes de se estabelecer na Argentina; ou desconhecem que vários colegas viveram em campos de refugiados na Europa. 

Em suma, estamos descobrindo um mundo, tão próximo e tão distante, que desconhecíamos.

Não vou me deter no Programa que originou o prêmio. Em linhas gerais, é um Programa de bolsas sociais/raciais que privilegia afrodescendentes, indígenas e refugiados economicamente excluídos, da mesma forma que outros profissionais que não possam arcar com os custos de uma formação analítica. Vamos iniciar a terceira turma de bolsistas – pois o programa funciona desde 2021 -, tendo atualmente já 16 bolsistas participantes, sem custos, exceto o pagamento das análises pessoais a preço suficientemente reduzido, de modo a que se tornem viáveis, e supervisões oficiais que seguirão os mesmos padrões. 

Para que isto ocorresse, foi aberta uma inscrição para membros qualificados (membros efetivos) para analisar alunos, dispostos a trabalhar pelo menos três vezes por semana, em análises de 45-50 minutos. Obtivemos 14 adesões, alguns oferecendo mais horas, e esperamos que anualmente possamos contar com mais colegas. 

Estamos cientes que vários de nós já tratam alguns pacientes a preços sociais e, devido à idade ou compromissos financeiros, não podem aceitar tal comprometimento. Como a SBPRJ é uma sociedade de médio a grande porte – mais de 250 membros, contando os alunos – temos um bom número de analistas qualificados para manter o Programa, cerca de 100. Há também outros tantos que poderão ser qualificados, em breve, como Membros Efetivos mas … protelam. Este é um ponto que merece uma maior reflexão e neste breve ensaio gostaria apenas de despertá-lo e ouvir opiniões. Trata-se de um problema mundial: a resistência à promoção institucional. Alguns institutos optaram por criar cursos, outros promoveram novas formas de desenvolvimento institucional. Alguns psicanalistas têm escrito sobre o tema – no trabalho premiado cito David Armstrong – o qual desenvolve questões que temos discutido sobre as ansiedades do grupo de trabalho (análogas às da posição depressiva) que não têm recebido a devida atenção. Temos tido notícia de sociedades que tiveram dificuldade de fazer sucessores às suas direções por falta de membros com as devidas qualificações!

Mas voltemos ao Programa de bolsas especificamente, embora os problemas relatados envolvam responsabilidades que não diferem das que vamos discutir. 

Observamos que o Programa era desejo de uma ampla maioria. Sua história imediata nasce de um Simpósio do Instituto da SBPRJ, em 2019, com a discussão do texto de um aluno – Daniel Senos – “Por uma sociedade de psicanálise na favela”. Mostra o jovem colega que a própria localização de nossas instituições revela seu caráter elitista, de difícil acesso aos moradores das comunidades periféricas. Essa discussão nos encontrou mobilizados e indignados pela onda de violência, principalmente contra jovens e crianças negras nas absurdas batidas policiais nessas comunidades, em particular aqui no Rio de Janeiro. Inconformados com a questão das drogas ser ainda tratada como um caso de polícia – um estímulo à corrupção e ao crime -,  denunciada desde o governo FHC mas acentuada com as gestões de extrema direita. As notícias internacionais também corroboravam a flagrante discriminação, as vítimas sempre negras e pobres. Tudo isso levava a um estado de dor que sugeria ser o momento de tomarmos uma atitude objetiva. 

Assim, propus colocar em pauta a discussão de um Projeto de bolsas sociais/raciais, a exemplo do que já ocorria em muitas universidades. Para isso, foi realizada uma Assembleia Geral Extraordinária, presidida pela então presidente da SBPRJ – Ana Maria Sabrosa – onde a proposta foi aprovada pela unanimidade dos presentes (cerca de 100 membros, contando os representantes dos alunos). Foi organizada uma comissão – coordenada pela própria presidente – para elaborar uma redação final da proposta que, logo na gestão seguinte, de Lucia Palazzo, foi votada e aprovada. Já estava convidado para ser o Diretor do Instituto para implantar o Programa. Para tal, convoquei velhos e novos amigos comprometidos ideologicamente com o Programa. Enfatizo este ponto, uma vez que penso que o Programa de bolsas (assim como qualquer outro neste sentido) está implicado numa proposta política mais ampla de inclusão social. 

Propomos transformar uma cultura de exclusão em outra de inclusão. Não pretendemos uma mera ação beneficente, mas uma proposta de aproximar a Psicanálise da vida como ela é. Entendo que devido às inúmeras vicissitudes do século XX – duas guerras mundiais, fascismo, nazismo, holocausto, duas bombas atômicas, uma longa guerra fria, grandes descobertas, fim de impérios e surgimento de novos, entre outros eventos – a Psicanálise muitas vezes se viu afastada da vida cotidiana, sob vários aspectos. 

Um deles foi o afastamento do dia a dia de outros estratos sociais que não fossem os de uma classe média/alta privilegiada, ocidental, branca; lembremo-nos da bizarra discussão da psicanálise ser uma ideologia judaica, por alguns, ou, por outros, uma ciência burguesa. Não vamos perder tempo com tais bizarrices, pois, hoje em dia a resistência ao caráter revolucionário (no sentido de subverter o estabelecido, o establishment, no sentido que Bion dá ao termo, tanto pessoal, como social ou científico) adquire novas formas. Algumas um tanto gastas como a que receia uma popularização e banalização da psicanálise – sendo o que observamos com a expansão e democratização é exatamente o contrário – outras com a crítica aparentemente humilde, mas arrogante, de que não adianta, nem todos poderão usufruir de nossos conhecimentos, tudo é utopia e vai por aí afora a ladainha de um conhecido conservadorismo caduco, que muitas vezes se disfarça também na crítica a polarizações, adiando o consenso que já deveria ocorrer em relação ao fim da desigualdade, do racismo e do belicismo, tanto interestatal –  que anacronicamente ainda se expressa numa guerra em plena Europa – como o interpessoal no terror gratuito do mal pelo mal.

O que despertou nossa experiência, ainda recente, foram algumas indagações e outras constatações que gostaríamos de trazer ao debate com os colegas.

Por que somente agora se pensa e discute uma real democratização da formação psicanalítica? No nosso caso – evidentemente cada instituição terá seu desafio próprio – o Programa é viável, autossustentável a médio prazo e não traz ônus, sendo que com o tempo proporcionará um retorno através da formação de novos analistas e, consequentemente, membros da FEBRAPSI, FEPAL e IPA.

Contudo, este aspecto socioeconômico-financeiro me parece secundário no momento, e a dimensão científica e psicanalítica mais interessante.

A ampliação de postulantes oriundos de estratos, etnias e culturas diversas nos permite um real contato e convívio que alarga nossa sensibilidade e acuidade para formas de sofrimento e criatividade que tradicionalmente nos são desconhecidas. Um colega muito qualificado que participou do grupo que entrevistou cerca de 150 postulantes, com os mesmos padrões de cuidado e atenção conhecidos, resumiu o que tenho a dizer: “ … tenho a impressão, depois de ouvir tantas histórias, que entrei em contato com a vida como ela é!”, lembrando a antiga coluna jornalística de Nelson Rodrigues, na Última Hora. 

Neste sentido, lembraria um outro Nelson, Mandela, que dizia que não estava libertando os negros somente, mas também os brancos de seu cativeiro de branquitude. Por outro lado, julgo que este projeto (agora programa), aprovado por unanimidade, tornando-se uma verdadeira política de estado da SBPRJ, nos faz defrontar com todos os desconcertantes sentimentos despertados pela vivência de uma experiência extremamente enriquecedora, a de um ambiente de inclusão em vez da caricata elitização – quer econômica, quer cultural – que isola e empobrece um real desenvolvimento. Estamos cientes que este é um primeiro passo, irreversível, mas pioneiro, que encontrará as resistências numa cultura em que fomos criados para sermos uma elite. 

Neste sentido, o reconhecimento pela IPA nos trouxe um formidável apoio e a esperança de que se torne efetivo o desenvolvimento da Psicanálise como um poderoso instrumento de crítica da cultura.

Tenho que parar por aqui, reafirmando minha alegria em ver outros colegas construindo seus próprios programas e com a esperança que isto se torne tão corriqueiro como são as atuais cotas nas nossas universidades que há poucos anos – uns 25, não mais – eram objeto de discussões e questionamentos. Hoje, temos dificuldade em imaginar um ambiente universitário que não seja diversificado tal como deve ser o conhecimento, aberto para todas as possibilidades.

Recordo-me de um programa na Rádio MEC com a querida Sonia Eva Tucherman, discutindo a implantação das cotas com Jurema Batista, pelo movimento negro, sua viabilidade e futuro. Da mesma forma, vem à lembrança outro programa em que discutíamos o sonho da paz, com Odilon Niskier – também saudoso amigo – e um radialista árabe. Tais associações não são gratuitas, pois a luta contra a Discriminação, o Preconceito e o Racismo se confunde com a luta por uma sociedade pacífica e igualitária, o que entendemos ser a única saída para evitar uma catástrofe – maior do que a que já vivemos e insistimos em ignorar – e assegurar uma vida digna de ser vivida.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Vidas Negras Importam e Instituições Psicanalíticas

Palavras-chave: psicanálise, vida, exclusão, inclusão, fraternidade

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Tags: exclusão | Fraternidade | inclusão | Psicanálise | Vida
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