Hoje, dando sequência aos textos dos candidatos da América Latina ao BOARD da IPA, publicamos o ensaio da nossa colega Maria Cecília Pereira da Silva (SBPSP) uma das candidatas a nos representar no Board da IPA. Agradecemos a você Maria Cecília por ter respondido prontamente ao nosso Convite de escrever sobre um acontecimento da atualidade para o OP…
Forte abraço, equipe de Curadoria
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Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Risos em tempos sombrios. Entre a dor, o amor e a esperança
Maria Cecília Pereira da Silva (SBPSP)
“Eram 8 horas da manhã quando ouvi uma explosão. Levei um susto! Não sabia o que estava acontecendo. Meu companheiro disse que eram pesadelos e que voltasse a dormir, mas logo em seguida ele viu que a guerra tinha começado. A Ucrânia estava em guerra e eu grávida de cinco meses. A solução era eu ir para a fronteira com as crianças e esperar. Então alugamos um apartamento e durante 15 dias olhava para as crianças e para a fronteira… Eu não queria sair, tínhamos tudo na minha terra mãe. Um dia acordamos com bombardeio e saímos com duas malas. Andamos 30 quilômetros. Começou em fevereiro e continua até agora. Toda noite penso como quero voltar para casa, mas as bombas não cessam.”
Essas foram as primeiras palavras de nossa paciente ucraniana atendida na Clínica Transcultural da SBPSP, uma clínica extensa, que, como aponta Fabio Hermann (2003), está inserida no mundo real, pensa as múltiplas condições do ser humano no mundo, preservando as condições para um encontro de intimidade em que observações psicanalíticas sejam possíveis.
As situações de guerras, abalos sísmicos, campos de concentração, ditaduras, migrações forçadas, polarizações políticas, deixam marcas de sofrimento no ser humano e são como campos minados em nossas mentes que tocam e testam nossa capacidade de pensar.
Uma rede de continência é oferecida pelo dispositivo da Clínica Transcultural. Uma escuta apoiada na matriz epistemológica da psicanálise e complementada pela antropologia (Devereux, 1970) unida a uma posição descentrada do analista, possibilita o acolhimento da multiplicidade de repertórios culturais das famílias migrantes ou refugiadas que nos procuram. Complementarismo e descentramento são conceitos essenciais que instrumentalizam nossa posição ética nesta clínica plural (Moro, 2015).
Nesse “setting”, a terapeuta principal, ajudada pela equipe de terapeutas e uma tradutora cultural, oferece imagens e sonhos à paciente para que ela possa processar as passagens vividas durante a migração e construa os vínculos iniciais com seu bebê que nasceu prematuro, tal qual prematura sua necessidade imperativa de se refugiar em outro país.
“Percebia que algo não estava bem comigo e fui ao hospital. Tive um parto prematuro e passei muito stress. Quando acordei da cesárea não tinha nenhuma criança ao meu lado: nem o bebê nem os mais velhos. Só fotografias. Só mais tarde, soube que eles estavam vivos e bem.
Agora não consigo conter minhas emoções. Choro muito, está difícil. Não consigo me controlar. Preciso muito de ajuda. No hospital a assistente social me disse que eu falava muito da guerra e pouco do bebê.”
Como ser mãe no exílio, sem uma rede de apoio, quando elementos culturais se misturam e se imbricam com os individuais e familiares de maneira profunda e precoce, reavivando representações por vezes adormecidas?
Talvez o poder do amor para não adoecer, como assinalava Freud (1914), ou o amor como uma predisposição natural para se ser a favor de outrem… para se favorecer alguém… ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa, como escreveu Valter Hugo Mãe (2012), tenha sido o que ancorou o vínculo dessa dupla mãe-bebê. O eco desse amor não tem fronteiras, o amor não tem exílio, é uma língua universal: o amor, a dor e a maternidade.
“Ele é muito bonito, ele é um raio de luz, quando ele acorda está sempre sorrindo, ele tem uma vivacidade, ele faz sons, ele é muito vivo e ao olhar para ele eu vejo que esse bebê é o objetivo de vida de qualquer mãe. O filho mais velho, às vezes vem e me abraça e diz: esse bebê é necessário para nós dois”.
Ela então sorri ao falar desse bebê que nasceu no refúgio e nós retribuímos o sorriso, amplificando esse amor para que se torne mais forte que os abalos emocionais provocados pela maternidade no exílio.
Durante as consultas, a partir de um trabalho interno de continência e “rêverie”, processando o impacto emocional, fomos transformando em sonhos seus relatos aterrorizantes.
Foi assim que falamos da rede que estávamos construindo com ela, oferecendo um alimento nutritivo tal qual o leite que ela oferecia ao bebê.
Apesar da saudade de sua terra mãe ela estava traçando sua travessia entre a dor e a esperança, mantendo um cordão umbilical e ajudando seus conterrâneos no que era possível.
“Estou feliz porque ele começou a gargalhar. Está sorrindo e mostrando emoções, ele olha para mim e sorri, é apaixonante. Se saio de seu campo de visão, ele fica bravo e chora e eu tento ajudar… ele está se desenvolvendo bem.”
Meltzer (1988) nos ensinou que a apreensão do belo vai marcar definitivamente o desenvolvimento emocional. Esse encontro se deu entre o bebê e sua mãe. Assim como ela, nós nos emocionamos e o encantamento tomou conta de toda equipe. Esse bebê, como diz Mãe (2012), é uma criança filha de mil homens, filha do mundo, e todos somos responsáveis por ela, foi acolhido por nós e nos fez sorrir.
A paciente nos segue com o olhar, acompanha nosso diálogo como se compreendesse o português. É um verdadeiro encontro emocional com sentimentos compartilhados.
Em tempos sombrios, nossa capacidade de pensar, centrando empaticamente nossa escuta num universo cultural diverso e processando nossa contratransferência cultural, é desafiada. É função do psicanalista favorecer a elaboração dessas cicatrizes e procurar impedir sua transmissão para as futuras gerações.
“Muito obrigada por acharem tempo para me ouvir. Agradeço também ao meu bebê que me permitiu conversar com vocês.”
Equipe da Clínica Transcultural do Centro de Atendimento Psicanalítico da SBPSP: Diva Cilurzo Neto, Eliane Muszkat, Fushae Yagi, Joyce Kacelnik, M. Cristina Boarati, M. Helena Hessel, M. Cecília Pereira da Silva, M. do Carmo Amaral, M. José Mazzonetto, Marília Santos, Rosana dos Santos, Wadad Leôncio.
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1976d). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Edição obras completas (Vol. XIII). Imago. (Trabalho original de 1914)
Hermann, F. (2003). Conferência de abertura do 3o Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos. In L. M. C. Barone (Coord.), A psicanálise e a clínica extensa: 3o Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos (pp. 01 a 13). Casa do Psicólogo.
Mãe, V. H. (2012). O filho de mil homens. Cosac Naify.
Meltzer, D.; Harris, M. W. (1990 [1988]). La aprehensión de la belleza, Spatia ed., Bs. As., 1990.
Devereux, G. (1970). Essais d’ethnopsychanalyse générale. Gallimard.
Moro M. R. (2015). Psicoterapia transcultural da migração. Psicologia USP, 26(2), 186-192.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras chaves – guerra, maternidade, exílio, refugiados, clínica transcultural
Imagem: “Os viajantes” Bruno Catalano / França – 1960
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Tradução para o espanhol
Observatorio Psicoanalítico – OP 375/2023
Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el mundo.
A risa en tiempos sombríos. Entre el dolor, el amor y la esperanza
Maria Cecília Pereira da Silva – SBPSP
“Eran las ocho de la mañana cuando escuché una explosión. ¡Me asusté! No sabía qué pasaba. Mi compañero me dijo que sería una pesadilla y que me volviera a dormir, pero, luego después, vio que era la guerra que había empezado. Ucrania estaba en guerra y yo estaba embarazada de cinco meses. La solución sería que me fuera a la frontera con los niños y esperara. Así, alquilamos un piso y, durante quince días, estuve mirando a los niños y la frontera… No quería irme, teníamos todo en mi tierra. Un día, nos despertamos con el bombardeo y salimos con dos maletas. Caminamos treinta kilómetros. Empezó en febrero y sigue hasta ahora. Todas las noches, pienso en cómo deseo volver a casa pero las bombas no paran.”
Esas fueron las primeras palabras de nuestra paciente ucraniana atendida en la Clínica Transcultural de la SBPSP, una clínica extensa que, como señala Fabio Hermann (2003), está inserida en el mundo real, piensa las múltiples condiciones del ser humano en el mundo, preservando las condiciones de un encuentro íntimo en el cual las observaciones psicoanalíticas son posibles.
Situaciones de guerra, seísmos, campos de concentración, dictaduras, migraciones forzadas, polarizaciones políticas dejan marcas de sufrimiento en los seres humanos y son como campos minados en nuestra mente, que tocan y ponen a prueba nuestra capacidad de pensar.
El dispositivo de la clínica intercultural proporciona una red de continencia. La escucha apoyada en la matriz epistemológica del psicoanálisis, complementada con la antropología (Devereux, 1970) y junto con la posición descentrada del analista, posibilita acoger la multiplicidad de repertorios culturales de las familias migrantes o refugiadas que nos llegan. El complementarismo y el descentramiento son los componentes esenciales que instrumentalizan nuestra posición ética en esta clínica plural (Moro, 2015).
En ese setting, la terapeuta principal, apoiada por el equipo de terapeutas y una traductora cultural, ofrece imágenes y sueños a la paciente para que ella pueda procesar los pasajes vividos durante la migración y construir los vínculos iniciales con su bebé que nació prematuro, así como prematura fue la imperiosa necesidad de refugiarse en otro país.
“Me di cuenta de que algo no iba bien y me fui al hospital. Tuve un parto prematuro y pasé por mucho estrés. Cuando volví de la cesárea, no había ningún niño a mi lado: ni bebé, ni adultos. Solo fotografías. Solo más tarde supe que estaban vivos y bien. Ahora, no llego a contener mis emociones. Lloro mucho; me resulta difícil. No llego a controlarme. Realmente necesito ayuda. En el hospital, la trabajadora social me dijo que yo hablaba mucho de la guerra y poco del bebé.”
¿Cómo ser madre en el exilio, sin una red de apoyo, cuando los elementos culturales se mezclan y se entrelazan con individuos y familia de manera profunda y precoz, llevando a revivir representaciones por veces adormecidas?
Tal vez, el poder del amor para no enfermar, como apuntaba Freud (1914), o el amor como predisposición natural al otro… al favorecimento de alguien… a ser, sin pensarlo, por el otro, como escribió Valter Hugo Mãe (2012), hay sido lo que haya anclado el vínculo de ese dúo madre-bebé. El eco de ese amor no tiene fronteras, el amor no tiene exilio, es un lenguaje universal: amor, dolor y maternidad.
“Es muy guapo, es un rayo de luz; cuando se despierta siempre está sonriendo, tiene una vivacidad, hace sonidos, está muy vivo y, cuando le miro, veo que este bebé es la meta de la vida, de cualquier madre. Mi hijo mayor, a veces, viene y me abraza y dice: a ese bebé lo necesitamos los dos.”
Ella entonces sonríe al hablar de ese bebé que nació en el exílio y le devolvemos la sonrisa, amplificando ese amor para que sea más fuerte que los sobresaltos emocionales que provoca la maternidad en el exilio.
Durante las consultas, a partir del trabajo interno de continencia y rêverie, procesando el impacto emocional, fuimos transformando sus aterradores relatos en sueños. Para eso, le hablábamos de la red que estábamos construyendo con ella, ofreciéndole alimento nutritivo justo como la leche que ella le ofrecía a su bebé.
A pesar de la añoranza de su tierra, estaba trazando su camino entre el dolor y la esperanza, manteniendo el cordón umbilical y ayudando a sus conterráneos en todo lo posible.
“Estoy feliz porque ha empezado a reírse. Está sonriendo y enseñando sus emociones, me mira y sonríe, es emocionante. Si salgo de su campo de visión, se enoja y llora y trato de ayudarla… se está desarrollando bien.”
Meltzer (1988) nos enseñó que la aprehensión de la belleza marcará definitivamente el desarrollo emocional. Ese encuentro ha tenido lugar entre el bebé y la madre. Al igual que ella, nos conmovimos y el encantamiento se ha apoderado de todo el equipo. Ese bebé, como dice Mãe (2012), es un niño hijo de mil hombres, hijo del mundo, y todos somos responsables por él, le hemos acogido y nos ha hecho sonreír.
La paciente nos sigue con la mirada, siguiendo nuestro diálogo como si entendiera en la lengua portuguesa. Es un verdadero encuentro emocional con sentimientos compartidos.
En tiempos sombríos, se nos desafía la capacidad de pensar, centrando nuestra escucha en el universo cultural diverso con empatía y procesando nuestra contratransferencia cultural. Es labor del psicoanalista favorecer la elaboración de esas cicatrices traumáticas y tratar de evitar su transmisión a las generaciones futuras.
“Muchas gracias por haberos tomado el tiempo para escucharme. También, se lo agradezco a mi bebé, que me ha permitido hablar con vosotros.”
Equipe de la Clínica Transcultural del Centro de Atendimento Psicanalítico da SBPSP: Diva Cilurzo Neto, Eliane Muszkat, Fushae Yagi, Joyce Kacelnik, M. Cristina Boarati, M. Helena Hessel, M. Cecília Pereira da Silva, M. do Carmo Amaral, M. José Mazzonetto, Marília Santos, Rosana dos Santos, Wadad Leôncio.
Referencias Bibliograficas
Freud, S. (1976d). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Edição obras completas (Vol. XIII). Imago. (Trabalho original de 1914)
Hermann, F. (2003). Conferência de abertura do 3o Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos. In L. M. C. Barone (Coord.), A psicanálise e a clínica extensa: 3o Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos (pp. 01 a 13). Casa do Psicólogo.
Mãe, V. H. (2012). O filho de mil homens. Cosac Naify.
Meltzer, D.; Harris, M. W. (1990 [1988]). La aprehensión de la belleza, Spatia ed., Bs. As., 1990.
Devereux, G. (1970). Essais d’ethnopsychanalyse générale. Gallimard.
Moro M. R. (2015). Psicoterapia transcultural da migração. Psicologia USP, 26(2), 186-192.
(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores.)
Categoría: Instituciones PsicoanalíticasPalabras clave – guerra, maternidad, exilio, refugiados, clínica transcultural
Imagen: “Os viajantes” Bruno Catalano / França – 1960