Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Racismo, esse preconceito que nos habita
Marcela Pohlmann (SBPdePA)
“A felicidade do branco é plena
A felicidade do preto é quase”.
(Emicida)
Este trabalho é fruto das minhas leituras que foram possíveis graças às ações afirmativas que começaram a ocorrer na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, em 2020, que incluíram o letramento racial e a reflexão sobre as consequências do colonialismo, além da oportunidade de estudar em seminário novos autores e autoras negras. A abertura de meu pensamento trouxe à consciência o racismo que habita em mim.
Nasci em uma cidade muito pequena no Oeste de Santa Catarina. Essa região foi povoada por colonizadores gaúchos, descendentes de imigrantes italianos, que teriam utilizado um nome indígena Caibi (folhas verdes em tupi-guarani) para batizar a cidade. Essa foi a história contada na escola. Porém não foi bem assim.
Durante anos os caboclos ocuparam estes locais sem possuir títulos de propriedade. Quando as empresas colonizadoras tomavam a posse da terra elas tinham a contrapartida de povoar o local. Os caboclos se tornaram um entrave para o progresso. Essas pessoas foram expulsas, tiveram que deixar as pequenas roças que habitavam, mas continuaram fazendo parte da cidade, trabalhando para os agricultores como agregados, fixados nos sítios dos colonos e prestando serviços em troca de moradia e um pedaço de terra para plantar sua subsistência. Havia agregados prestando serviços nas pequenas propriedades dos meus avós, por exemplo. A história oficial de colonização da cidade até menciona a existência dos caboclos, mas não os inclui na narrativa da criação da cidade. Foi um amigo de infância, Luiz Henrique de Nadal, neto de um dos colonizadores, que fez de seu doutoramento uma narrativa realista diferente da oficial, entrelaçando a história do colonizador com os que estavam lá antes deles. Em sua tese ele cita que “Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores” (Benjamin, 1994).
Trago esse exemplo da minha pequena cidade para pensarmos se não foi o que ocorreu no Brasil como um todo, a história contada pelo vencedor, neste caso o povo não negro. Os caboclos no caso de minha cidade natal são invisibilizados, residem até hoje por lá de forma periférica e não participam da vida social da cidade. Tanto na pequeníssima Caibi, de 6 mil habitantes, como no restante do Brasil, há um apartheid à brasileira.
Djamila Ribeiro nos fala em seu Manual Antirracista” (2019) da importância de abordar a perspectiva histórica da relação entre escravidão e racismo, mapeando suas consequências, que apontam para um sistema que beneficia a população branca em detrimento da população negra tratada como mercadoria, sem acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas.
Para Silvio Almeida, racismo no Brasil é uma temática estrutural que integra a organização econômica e política da sociedade. No Brasil há um mito de que não há racismo, uma negação importante que impede o debate acontecer. No seu livro sobre racismo estrutural ele diz que “o racismo não é um fenômeno patológico, é uma manifestação normal da nossa sociedade e fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social” (Almeida, S. 2019). Isso é fruto de um passado escravocrata que lucrou muito com a comercialização de pessoas escravizadas e depois com o tráfico quando o comércio de escravizados foi proibido. A captura e venda de pessoas era um negócio rentável, e foi justificado dentre outros motivos, porque os habitantes encontrados nos mundos não europeus eram ditos primitivos.
Achille Mbembe, no livro “A crítica da razão negra”, escreve que “foi o movimento de levar civilização para onde ela não existia que redundou em um processo de destruição e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão, o que se configurou de colonialismo” (2022)
E vivemos ainda hoje sob esse sistema colonial de pensamento, não conhecemos a história que não seja contada pelo colonizador. Foi um processo tão traumático que parece ter moldado nosso comportamento para sempre, escreveu Jeferson Tenório, em um artigo no jornal Zero Hora, em que questiona se alguém gostaria de ser tratado como um negro.
Mbembe afirma que o colonialismo foi um projeto de universalização, cuja finalidade era inscrever os colonizados no espaço da modernidade. Porém, a liberdade, igualdade e fraternidade foram designados para somente uma parte da população.
A igreja compactuou e lucrou muito com o comércio de escravizados. Escravizar era prática normal e que estava presente em todas as esferas sociais.
Entre 1500 e 1900 a colonização europeia movimentou 18 milhões de africanos escravizados. Para se ter ideia 1/3 dos chefes de família no Brasil tinham escravizados, até mesmo negros tinham escravizados, era a moeda da sociedade, porém eram a minoria, 94% dos donos de escravizados eram brancos. Cinco a seis por cento tinham mais de 20 escravizados. O porto de Valongo no Rio de Janeiro foi o local que mais recebeu pessoas escravizadas no mundo. O Brasil foi onde o regime escravocrata teve maior duração. Esses dados são do Projeto Querino, uma pesquisa histórica com olhar afro centrado.
Depois do século XVIII a escravidão era justificada por motivos científicos, biológicos e determinismo geográfico. Essas teorias diziam que a pele não branca e o clima tropical favoreciam o aparecimento de comportamentos imorais, lascivos e violentos, além de indicarem pouca inteligência. Porém, após a Segunda Guerra Mundial e o genocídio perpetrado pelo nazismo, surge a ideia de que raça é um elemento político.
Retomo Jeferson Tenório, escritor de “O avesso da pele” (2021) , ganhador do prêmio Jabuti e sua pergunta: você gostaria de receber o mesmo tratamento que os negros recebem? Narra uma ida ao supermercado, descreve o cuidado com a roupa que está vestindo e todos os outros para não ser confundido com um assaltante na rua ou acusado de roubo no supermercado. O que seria um ato simples para nós brancos, para alguém que carrega consigo o olhar do julgamento é sempre a possibilidade de ocorrer a humilhação, a dessubjetivação do sujeito. Ao final questiona: que tipo de sociedade teima em julgar pela aparência? Cito, novamente, Mbembe: “O negro é uma sombra no meio de um comércio de olhares. Esse comércio tem uma dimensão tenebrosa, quase fúnebre, tamanho é o grau de elisão e cegueira que exige para o seu funcionamento”.
Desde cedo pessoas negras são levadas a refletir sobre sua condição racial. A raça é condição somente de pessoas negras. Não raro uma criança percebe a engrenagem racista e já é triturada por ela. Isso acontece geralmente quando começa a frequentar a escola. Mbembe nos provoca com as seguintes questões “quem é ele?; Como reconhecemos, o que diferencia de nós? A razão negra seria um conjunto de saberes e práticas, um trabalho cotidiano que constitui inventar, contar, repetir e promover a variação de fórmulas, textos e rituais com o intuito de fazer surgir o negro enquanto sujeito racial e exterioridade selvagem, passível de desqualificação moral e de instrumentalização prática”. O diferente é visto como defeito. O negro não é autodefinido, é identificado. Joice Berth diz que não se descobriu negra, foi acusada de sê-la. Crianças negras não podem ignorar as violências cotidianas, enquanto as brancas, ao enxergarem o mundo a partir de seus lugares sociais, que é um lugar de privilégio, num mundo eurocêntrico, acabam acreditando que esse é o único mundo possível. Ao negro a branquitude colocou máscaras com definições claras do que podiam ou não fazer, com a ideia de não existir racismo no Brasil, sob o mito da tal miscigenação racial. Quando um negro tira esta máscara é acusado de toda a sorte de defeitos rejeitados à branquitude, passa a ser objeto e não sujeito de sua vida. O racismo, diz Mbembe, consiste em substituir aquilo que é por algo diferente. É típico do racismo, diz ele, suscitar um duplo, o rosto é coberto por um véu; Fanon fala em máscara, em “Pele negra, máscaras brancas” (2008) . No lugar deste rosto, esta máscara faz emergir, das profundezas da imaginação, um rosto de fantasia, um simulacro, uma silhueta que toma o lugar de um rosto e um corpo humanos.
O que é desmentido à realidade e projetado é o eu falho do branco. Grada Kilomba (2019) diz que o negro é forçado a desenvolver uma relação consigo mesmo através de uma força alienante do outro branco. Utiliza a linguagem traumática, citando Fanon, para falar de experiências de racismo no cotidiano, indicando um poderoso impacto corporal característico de um colapso traumático, pois no racismo o individuo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ele possa realmente ter.
O trauma de pessoas negras se dá principalmente a partir do contato com a violenta barbaridade do mundo branco, que é a irracionalidade do racismo que coloca sempre o negro como um outro, como diferente, como incompatível, como estranho e incomum. Ser branco é existir violentamente, escreve Eliane Brum em “Banzeiro Okotó” (2021).
Finalizo meu texto com Jeferson Tenório: “se você sabe como pessoas negras são tratadas todos os dias é porque sabe que existe racismo e o problema é seu também”.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Vidas Negras Importam
Palavras-chave: Racismo, Escravidão, Perspectiva histórica, Caboclos, Colonialismo, Dessubjetivação.
Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook: