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Racionais MC’s: malandragem de verdade é viver
Gabriela Seben (SBPdePA)
Estreou no último dia 16 de novembro na plataforma Netflix o documentário: Racionais – das ruas de São Paulo pro mundo. Dirigido por Juliana Vicente e produzido pela Preta Portê, o filme retrata a origem, a trajetória e a importância do grupo de rap nacional formado por Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock. Em cenas que datam do início dos Racionais, há 30 anos, até os dias atuais, o documentário explora a relação do grupo com as pessoas da periferia, o que certamente ultrapassou a música, já que suas canções visavam denunciar o racismo, a miséria e a brutalidade com que eram e são tratados os jovens negros da favela.
O quarto álbum “Sobrevivendo no inferno”, que alçou o grupo à fama (e foi incluído na lista de leituras obrigatórias da Unicamp), ressalta o esforço de muitos para contrariar as estatísticas e sobreviver literalmente às dificuldades na periferia. A letra de “Diário de um detento” foi produzida em parceira com Jocenir Prado, ex-presidiário do Carandiru, palco do massacre praticado pela polícia que matou 111 presos em outubro de 1992, em sua maioria negros. Os versos narram o cotidiano do cárcere e a invisibilidade dos presidiários, como no trecho:
“Hoje tá difícil, não saiu o sol
Hoje não tem visita, não tem futebol (…)
Tem uma cela lá em cima fechada
Desde terça-feira ninguém abre pra nada
Só o cheiro de morte e Pinho Sol
Um preso se enforcou com o lençol”.
Eu conheci o som dos Racionais MC’s quando ainda era adolescente e morava em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul. Dos jovens da periferia até a “playboyzada” da minha cidade, muitos ouviam aquele som de batida firme e letras contundentes que invadia as rádios do país inteiro. Eu, mulher branca, que absolutamente desconhecia aquele contexto de violência, discriminação racial e assassinatos – algo cotidiano nas periferias de São Paulo e de todo o Brasil – me sentia curiosamente tocada pelo discurso indignado do distante Capão Redondo, prova de que eles conseguiram romper barreiras até então intransponíveis ao disseminarem suas músicas por todos os cantos do país. Mano Brown deixa claro que o objetivo era conversar com os negros, os manos, os iguais. Soava incômodo ver suas músicas virando objeto de consumo dos brancos.
A maior parte dos versos do grupo não são lúdicos. As letras são fortes, pesadas. Há um excesso de realidade que marca o dia a dia difícil na favela. A música “Mágico de Oz” inicia com a fala sofrida de um menino usuário de drogas:
“Eu comecei a usar pra esquecer dos problema (…) meu pai chegava bêbado e me batia muito”, seguido pelos versos:
“Aquele moleque sobrevive como manda o dia a dia
Tá na correria, como vive a maioria
Preto desde nascença, escuro de sol
Eu tô pra ver ali igual no futebol
Sair um dia das ruas é a meta final
Viver decente, sem ter na mente o mal…”
As letras retratam o caráter desumano com que são tratados os negros em nosso país, ao mesmo tempo em que visam resgatar a autoestima e o sentimento de pertencimento dos mesmos, como no trecho de “Negro drama”:
“Mas aí, se tiver que voltar pra favela
Eu vou voltar de cabeça erguida
Porque assim é que é, renascendo das cinzas
Firme e forte, guerreiro de fé”
Não é preciso viver na favela para supor a imensa dor decorrente do desamparo e do abandono do negro no Brasil, sobretudo por parte do Estado, que segue zelando por suas raizes escravocratas. É importante lembrar que a escravidão em terras tupiniquins durou quatro séculos. A falta de legitimação desta história traumática conduz, ainda hoje, a uma compulsão à repetição mortífera.
É preciso recordar para não repetir, já nos ensinou Freud (1914). Ainda que com roupagens mais modernas, um tanto diferentes daquelas que antecederam a lei Áurea, os negros seguem sendo tratados como cidadãos de segunda categoria em nosso país. Já não são castigados a chibatadas, é fato, mas são mortos e asfixiados nos carros da polícia, explorados, linchados, presos injustamente. Dados atualizados do anuário brasileiro de segurança pública indicam que a cada três presos no Brasil, dois são negros. E os MC’s trataram de dialogar com a população carcerária, destino comum a muitos negros da periferia. Depois disso, a morte.
As músicas dos Racionais tratam daquilo que Grada Kilomba denomina como “racismo cotidiano”, uma espécie de intrusão constante, vivida diariamente, deixando marcas traumáticas indeléveis no psiquismo do sujeito. Trata-se de uma realidade traumática que reencena o passado colonial de brancos dominadores e de pretos dominados. Neste contexto em que o negro tem de ser sempre “o outro”, as canções dos Racionais incitam à rebelião: como tornar-se “eu”, não mais assujeitado às demandas do branco?
É preciso descolonizar-se. Mas como enfrentar o racismo estrutural que há séculos nos permeia? Mano Brown brada:
“Racistas otários nos deixem em paz pois as famílias pobres não aguentam mais (…)
Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos
O preconceito e o desprezo ainda são iguais
Nós somos negros também temos nossos ideais
Racistas otários nos deixem em paz”.
Os MC’s do Capão Redondo saíram das ruas de São Paulo e ganharam o mundo ao decidirem se opor à ideia de que ser negro é ser coisificado e degradado. Uma íntima e perigosa relação, que segundo Achille Mbembe (2018) tem a capacidade de estrangular o negro e vincular o seu nome à morte (a exemplo da mão negra empunhando uma arma usada como imagem em matéria publicada pelo Estadão sobre o crime cometido em uma escola no Espírito Santo praticado por um atirador branco). O silêncio do negro perpetua a ordem de se calar e de permanecer invisível. E o que os Racionais MC’s fizeram foi gritar e exigir justiça e igualdade. Sua voz fez eco.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Vidas Negras Importam
Palavras-chave: Racionais, Música, Racismo, Negros, Periferia.
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