Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Os brasileiros e a Copa do Qatar
Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)
Na semana passada um paciente me perguntou como eu faria durante a Copa do Mundo. Entendi, de imediato, que ele queria saber se eu iria atender. Meio de bate-pronto respondi que sim. Nem me dei conta de que ele se referia, particularmente, a partidas do Brasil em horários coincidentes com suas sessões. Pensando bem, talvez eu acabe assistindo aos jogos. Afinal, eu também aprecio o esporte e alguns analisandos – como é da nossa cultura – poderão optar por acompanhar estas pelejas.
A minha reação inicial, no entanto, revela um desligamento e desinteresse pela atual seleção e seu grupo de jogadores. Para efeito de comparação, eu me lembro perfeitamente da escalação do time titular que venceu a Copa de 1970 no México: Felix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gerson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino. Era um timaço com vários craques carismáticos e havia um frenesi em acompanhá-los, pela primeira vez na TV em cores.
Ganharam brilhantemente o campeonato e o presidente Médici aproveitou o ensejo para faturar, politicamente, alguns dividendos em cima desta vitória. Ressalte-se que a ditadura militar vivia um de seus períodos mais duros, os anos de chumbo. Quem viveu este tempo, há de se recordar da música:
Noventa milhões em ação
Pra frente Brasil, no meu coração
Todos juntos, vamos pra frente Brasil
Salve a seleção!!!
Era o ufanismo das pessoas, que vibravam com o selecionado – realmente espetacular – mas desconsideravam o uso político do mesmo. De fato, mesmo os democratas mais progressistas, conscientes dos horrores do regime ditatorial, torciam sem muitas restrições, todos encantados com as exibições da fabulosa equipe.
As recordações ajudam a compreender a minha falta de entusiasmo de hoje em dia. Quanto a isso há duas questões a considerar.
Primeiramente, nossos jogadores saem cedo do Brasil e vão ganhar muito dinheiro na Europa. A bem da verdade, o nível do futebol europeu, especialmente a Champions League, é bem superior ao nosso. Lá, as partidas são disputadas com muita intensidade e apuro técnico pelos melhores atletas, oriundos de todas as partes do mundo.
Os nossos jovens futebolistas tornam-se milionários aos vinte e poucos anos e têm pouquíssima vinculação, quase nenhum envolvimento, com o que acontece no país. Alguns deles são praticamente desconhecidos por aqui.
Tomemos o exemplo de Neymar Jr, o mais famoso e badalado entre os nossos jogadores. Este rapaz chegou à casa dos trinta anos e continua o mesmo garotão irresponsável e inconsequente do início da carreira. As notícias a seu respeito são, invariavelmente, as suas conquistas amorosas, suas viagens e as festas que oferece, sempre cercado por meninas bonitas, eventualmente a namorada famosa da vez, além dos vários companheiros, os indefectíveis “parças”, que gravitam ao seu redor. O assunto mais sério que vazou pela imprensa a seu respeito foi o possível acordo que seu pai/empresário teria conseguido a partir de um encontro com o presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes para tratar de “assuntos tributários”. O pai, sempre zeloso pela total tranquilidade do filho, pretendia, provavelmente, conseguir a isenção de uma parte considerável de sua dívida em impostos junto à Receita Federal. Uma dívida, aliás, que já havia sido reduzida de R$188,8 milhões para R$8milhões na gestão de Michel Temer. Por sinal – para nenhuma surpresa de quem quer que seja – Neymar declarou apoio ao candidato à reeleição no recente pleito de outubro de 2022.
Estamos diante de um símbolo de alienação e total descaso em relação às questões sociais. Vive em uma bolha, curtindo a vida de playboy, olhando para o seu maravilhoso umbigo. Um episódio que chamou a atenção em 2019 foi a história de uma modelo que o acusou de estupro. A denúncia não se comprovou por completo, dando margem à hipótese de uma tentativa da mulher em obter alguma vantagem do ocorrido.
Contudo, a situação é, em si, emblemática de um funcionamento mental. Disposto a ter uma noite com a moça, Neymar lhe pagou a passagem para Paris e a estadia em hotel. Era apenas um desejo eventual, que acabou lhe dando uma dor de cabeça inesperada com a justiça. Ele deve supor que as meninas teriam a obrigação de ser mais agradecidas quando lhes concede o privilégio de uma “transa”. Percebe-se um sujeito dotado de talento excepcional para o esporte, mas que, de resto, é um ser que não precisa ou não faz questão de pensar.
Esta é a realidade de grande parte dos jogadores de sucesso. Nascem em famílias humildes, destacam-se jogando bola, viram milionários e “vivem a vida” como poderosos “donos do mundo”, inebriados por uma sensação de self grandioso, acima da lei. A lei só valeria para meros seres humanos comuns. Livram-se da pobreza, escapam de um destino difícil, porém, aparentemente, ostentam um espaço vazio entre as orelhas. Infelizmente, o precoce triunfo esportivo lhes inibe a vontade de estudar e aprender a se conectar com uma realidade mais abrangente. Da mesma cidade de Santos, onde surgiram Neymar e Pelé, é o ex-jogador Robinho, outro exemplo desta configuração em que o indivíduo acredita na quase ausência de limites. Atualmente, ele vive meio recluso. Não pode sair do Brasil, pois corre o sério risco de ser preso por ter sido condenado em Milão como participante de um caso de estupro coletivo.
A triste constatação é que só raramente aparecem craques com um olhar mais voltado para a pólis. Lembro-me apenas de Afonsinho, Sócrates e Tostão, não por acaso três médicos, além de Raí e Casagrande, estes últimos ainda com visibilidade na mídia.
Alienação e omissão caracterizam um posicionamento que se presta à perpetuação do status quo, marcado pela impressionante desigualdade socioeconômica vigente no país. Os ídolos do futebol, assim como os cantores sertanejos – estes mereceriam outro texto – são uma classe privilegiada de indivíduos bem-sucedidos profissional e financeiramente, sem mais nada a apreciar em suas atitudes como figuras públicas que são. Ostentam a vida de detentores de algo como um falo poderoso, bem adaptados à mediocridade desta nossa sociedade, caracterizada por machismo retrógrado e preconceitos de toda a espécie.
Como contraponto ao comportamento omisso da maioria dos atletas brasileiros cito o jogo entre Inglaterra e Irã. Os iranianos não cantaram o hino, em protesto contra a repressão com que são tratadas as mulheres no seu país. Simultaneamente, nas arquibancadas do estádio, apareciam camisetas e uma bandeira com os dizeres: “Women Life Freedom”. Os ingleses, por sua vez, ficaram de joelhos antes do apito inicial, em manifestação comumente antirracista, mas que, desta vez, visava defender os direitos dos indivíduos LGBTQI. Diga-se de passagem, que braçadeiras com as cores do arco-íris foram vetadas pela Fifa. Deste modo, a braçadeira do capitão inglês teve sua inscrição alterada para: “No Discrimination”. Diante do nítido contraste com os colegas estrangeiros, torna-se evidente – pelo menos por ora – a falta de ousadia de nossos futebolistas no sentido de participar, minimamente que seja, do debate público.
O outro aspecto negativo desta Copa é a indicação do Qatar para a sua realização. Trata-se de blindar uma ditadura, em que uma mesma família se reveza no poder, sendo que a última eleição data de 1970. Lá vigora a censura à imprensa, a criminalização da população LGBTQI e mulheres são vistas como cidadãs de segunda classe. Acrescente-se que operários imigrantes são submetidos a um tratamento desumano, trabalhando sob o calor escaldante com salários irrisórios, vivendo em regime de semiescravidão. O jornal Guardian de Londres mencionou um número de 6.500 mortos na construção dos estádios para o campeonato. A Copa é um negócio de bilhões e a Fifa, entidade que gerencia o futebol no mundo, “passa o pano” para os aspectos mais chocantes do país sede do torneio. Não se pode descartar que a escolha do Qatar para sede do evento tenha sido, de alguma forma, “comprada” com grande quantia de dólares.
Por essas e outras o prazer em assistir aos jogos necessitará de uma dose de negação da realidade e a capacidade de fazer vista grossa para fatos que transcendem ao esporte. Talvez, como efeito colateral, a Copa sirva para dar uma trégua na polarização aqui vigente, que continua acirrada após a vitória de Lula. Oxalá os fanáticos inconformados com sua eleição saiam da frente dos quartéis – onde continuam a clamar por intervenção militar, em claras manifestações antidemocráticas – para ir, enrolados em suas bandeiras verde-amarelas, torcer pelo Brasil no futebol.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: alienação, falo, negação da realidade, self grandioso; vista grossa.
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