Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Política identitária, taxonomia, estrutura
Luiz Meyer (SBPSP)
Cabe agradecer a Manola Vidal a oportunidade de discutir o livro de Elisabeth Roudinesco “O Eu soberano: ensaios sobre as derivas identitárias” apresentado em sua resenha critico-indagativa neste OP.
O tema é candente, contemporâneo e Manola Vidal o apresenta apontando tanto para sua complexidade quanto para seu aspecto controverso. Entre nós, Antonio Risério, antropólogo baiano, tem debatido essa questão e o título de um de seus livros não deixa dúvidas quanto à sua posição, “Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista de esquerda identitária” (Top Books). Demétrio Magnoli, professor da USP, autor e articulista tem, em seus artigos e livros (por exemplo: “Uma gota de sangue: história do pensamento racial”, Editora Contexto), se mostrado um crítico acerbado da política identitária tal como ela se apresenta no momento.
O encadeamento de algumas frases e expressões da resenha de Manola Vidal nos permite reunir uma massa crítica útil para pensar a questão. Elisabeth Roudinesco denuncia uma “coerção identitária”, isto é, um patrulhamento ostensivo baseado em premissas ideológicas que vão limitar a discussão do problema, esvaziá-lo de sua complexidade e finalmente terminam por desembocar no que ela considera uma proposição da “abolição da diferença anatômica e biológica dos sexos”. Enquanto coerção ela seria um freio ao trabalho de pensar o novo (as questões identitárias contemporâneas), substituindo-o por normas prescritivas.
Elisabeth Roudinesco acentua que a noção de “diferença entre os sexos” é também esvaziada através da educação quer, por ela descrita como a “prática de esconder das crianças seu sexo anatômico” (talvez uma descrição mais exata seria a prática de desvalorizar essa diferença), conferindo-lhes a liberdade para escolher seu gênero. Vejo um parentesco entre esta “concessão de liberdade” e a home schoolling, recentemente aprovada por nosso parlamento, cuja essência é impedir às crianças a construção de uma sociabilidade estruturada a partir de uma multiplicidade e diversidade de contatos, de formas de pensar e de comportamentos, substituindo-os por práticas doutrinárias dos pais que deverão ser espelhadas pelos filhos.
O texto alude ainda à “inflação identitária”, “excesso identitário”. A autora ilustra esta perspectiva mostrando como um quadro psiquiátrico clássico, cuja psicopatologia é bem estudada e fonte de publicações variadas – o de múltiplas personalidades – (geralmente descrito em mulheres) foi fagocitado pelo movimento identitário que passou a considerá-lo uma reivindicação identitária, reativa à “opressão patriarcal masculina” (aos colegas interessados no tema, sugiro assistirem o filme “Lizzie”, de 1957, dirigido por Hugo Haas, que aborda esta questão de forma fascinante e ainda entrega como bônus Johnny Mathis cantando “It is not for me to say”). Curiosamente a forma da política identitária tratar a cisão da personalidade (acima descrita) passa ao largo da concepção kleiniana da formação do aparelho psíquico que concebe o movimento contínuo de cisão e integração do mundo interno como motores do seu desenvolvimento.
Uma das frases do texto que julgo de importância central, é aquela que aponta para “a ilusão do universalismo europeu contida na produção de subjetividades colonizadas”, que vai nos ajudar a circunscrever o problema e nos oferecer um ponto de fuga histórico para melhor entender onde se assenta parte das teses do denominado movimento identitário.
O Museu Judaico, de São Paulo organizou, recentemente, uma exposição intitulada “Botannica Tirannica”, concebida e organizado pela artista e professora Giselle Beiguelman da FAU-USP. É impossível dar conta da originalidade, da beleza, da criatividade e da vertente crítica dessa exposição. Assumindo o risco de ser redutivo, vou descrever o partido que a orienta. A exposição (entre outros aspectos) estuda as fontes sociais (imaginário colonialista, projeção no mundo da natureza desse imaginário) que determinaram a taxonomia botânica (e também alude a outras taxonomias, como a antropológica).
Mas não só: ela aponta para a hierarquia presente na linguagem que baliza esta botânica e que se revela um reflexo de organização social dos nomeadores: reino, classe, ordem, família, gênero, espécie. Para Giselle Beiguelman, a nomeação das plantas deve menos ao seu aspecto estrutural e mais à associação (que elas provocam) com as formas das relações e concepções sociais ditadas pelo que ela chama de Império (o equivalente ao “universalismo europeu”).
Emerge então toda uma taxonomia ligada a estereótipos, preconceitos e formas de dominação. Por exemplo: sapatinho-de-judia, judeu errante, barba de judeu, árvore de judas, coroa-de-cristo (ufa!), cadeira-de-sogra, beijo-de-puta, bebê-no-berço, clitória, peito-de-moça, bunda-de-mulata, catinga-de-mulata, cabeça de crioulo, pinto-de-negro, flor cigana, pente-de-cigana, trança-de-cigana, praga-cigana, brinco-de-índio, cachimbo-de-índio e maricas (amor-perfeito). O mote da exposição ilustra bem a função equívoca dessa taxonomia tal como Giselle Beiguelman a concebe: “Toda erva daninha é um ser rebelde” o que implica de imediato indagar pelo seu referente: em relação a quem? Para o extrativismo colonialista? Se invertermos a ordem, “Todo rebelde é um ser daninho”, cabe a mesma indagação: “comigo-ninguém-pode? Uma ameaça ao estabelecido?
De modo abrangente, a taxonomia (e podemos pensar na de gênero, raça, etc) é então apresentada como caudatária da visão do Império, mas – e este é para mim o fulcro da questão – tomá-la como foco de ação e crítica em nada afeta o Império. Dito de outro modo, o empenho em mudar a taxonomia e propor uma nova – e me parece que em parte é isto que os estudos e o movimento identitário estão propondo – em nada afeta ao que a ela subjaz.
O Império entranha nas plantas e nos sujeitos através dos cientistas que o servem, sua visão de mundo – não poderia ser de outro modo -, mas a proposta de confrontá-lo através de uma nova taxonomia tem caráter diversionista. A realidade se mantém, a mudança ocorre somente na aparência.
Se eu escrever: espero que todos entendam a minha argumentação (ao invés de todas e todos) não mudo um milímetro da realidade social, em nada afeto a forma já estabelecida de desigualdade e de preconceito de gênero, das relações de dominação e da luta de classes que as embasam. Pelo contrário: eu as ignoro e me consolo com a boa consciência que isto me confere.
A crítica de que Elisabeth Roudinesco endereça ao movimento identitário (segundo o que compreendi do texto de Manola Vidal) centra-se na sua recusa de discutir a diferença (mais precisamente a diferença de gênero, mas também aquela que caracteriza a patologia) e o seu sentido. Ao fim, o aspecto trágico dessa diferença é pasteurizado e substituído por uma aposta de caráter onipotente no livre arbítrio travestido de liberdade – o individualismo identitário assinalado no livro.
O movimento identitário parece ser vítima de uma distorção semelhante à que está presente naquela crítica feita à psicanálise que confunde a assimetria necessária ao funcionamento da análise com relação de poder de ordem hierárquica.
Evidentemente tal hierarquia não reside no dispositivo psicanalítico, mas na sua apropriação pela Instituição que, ao fim, desemboca na criação da análise didática. Da mesma forma, se mudarmos sua taxonomia para a eufemística “análise de formação”, estaremos ainda mantendo seu caráter segregado com as características de uma análise “à parte”.
O que se entende quando se afirma que algo é estrutural, como em racismo estrutural, machismo estrutural, misoginia estrutural? Penso que é dizer que esse algo se origina e opera segundo uma estrutura que precede o sujeito e o determina (por exemplo: o ponto de chegada da análise didática já é dado desde o seu início). Numa sociedade onde vige por exemplo o racismo estrutural qualquer que seja a atitude do individuo branco, por mais antirracista que seja, ele será de alguma forma beneficiado por este estado de coisas.
Na “Botannica Tirannica” Giselle Beiguelman chama de Império esta estrutura, e ela se desvela (entre outros modos), como já vimos, pela taxonomia que organiza. A forma mais eficaz de confrontar o Império é conhecer as razões que o movem, seus interesses e sua forma de funcionar (por exemplo: a que serve o racismo estrutural?). Ao Império pouco se dá se passarmos a chamar de Vênus Calipigia a exuberante Bunda-de-Mulata. Não se altera uma infraestrutura agindo sobre a superestrutura.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: Politica Identitária, Taxonomia, Estrutura, Colonialismo, Análise Didática.
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